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Crônica

O Obscuro Brilhante


O Obscuro Brilhante - Gente de Opinião

Dois amigos de fé, adeptos da vida/parábola a dois remos* – oração e ação −, bastante conhecida no meio religioso, desconfiados que o significado simbólico da alegoria nada mais era do que o efeito no corpo dos dois lados do cérebro humano, combinaram em aprofundar os estudos, antes de partirem para o além: − quem partir primeiro volta pra dar um sinal de vida após a morte. Aprenderam com Nietsche que “se um homem tiver realmente muita fé, pode dar-se ao luxo de ser cético”, complementando com outra frase do mesmo autor: “a fé é ignorar tudo aquilo que é verdade”.

Continuando os estudos, compreenderam que o homem foi premiado, pela evolução darwiniana, com um cérebro de dupla feição, único na fauna, ou seja, formado por duas metades, de aparência semelhante, conhecidas pelo nome de hemisférios cerebrais.  Embora externamente parecidos, possuem funções diferenciadas: o hemisfério esquerdo manifesta-se através do raciocínio e se expressa através da linguagem oral, a ação de um dos remos, e o hemisfério direito, o faz através da emoção e se expressa apenas através da linguagem visual (imagens), é a oração, nomeada no outro remo. Tudo junto e misturado, sem a separação apelativa do púlpito do clero.

É da ação e não da fé o privilégio da existência. Gerar, nascer, comer, consultar, hospitalizar, vacinar, curar, morrer, não dependem de fé. Todavia a neurociência, hoje, sabe, que a função da emoção é humanizar a razão, importante componente evolutivo, no processo da convivência. Todas as guerras, toda exploração capitalista do homem pelo homem, todas as ações escravistas, todos os preconceitos, se originaram/originam na razão.

Ainda assim são muitas as pessoas que se utilizam deste conhecimento, inclusive com interesses religiosos/financeiros, para explorar emocionalmente o racional.  Sábio é o caboclo amazonense que usa uma canoa, um remo sem nome e os dois braços, para remar de um lado e do outro: vai longe, na sua humildade, vai tão longe que afronta… Quando a civilização cobrou rapidez ao tempo, ele recorreu à ciência e adicionou a rabeta.

Embora convictos da veracidade da descoberta, os amigos queriam se aprofundar mais um pouco sobre a vida, não uma vida qualquer, mas a vida após a morte, e partiram para a fronteira entre os dois hemisférios, na tentativa de vencer a barreira mística e mítica da morte, a morte emocional, com a possibilidade de a verdade retornar, via pacto. Insistiram no acordo, mesmo sabendo que estavam mais próximos do abismo surreal da direita, numa região em que não há centrão.

Viajaram pela dúvida shakespeariana − to be or not to be that is the question  , pela moral cristã rousseauniana – o homem nasce bom e a sociedade o perverte −, pelas páginas do Porque Não Sou Cristão, de Roussel, pelo Pálido Ponto Azul de Carl Sagan,  embutiram interrogações na transvaloração dos valores morais defendidos por Nietsche, que sustentava que transvalorar é, em síntese, analisar os valores morais, tendo em vista a manutenção daquilo que pode ser benéfico ao ser humano e como promover a troca dos valores prejudiciais.  Às vezes os amigos se entreolhavam com os semblantes modificados, ora era o clarão do conhecimento ora a reflexão da transcendência, e silenciavam: “As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras”.

Pode ser que além dos ciprestes não haja nada, ou tudo; o que seria tudo? O que primeiro partiu, resolveu escrever NO, no último escrito, ainda em vida, deixado na caixa de e-mails e no WhatsApp do amigo. Filosofia, religião e ciência estiveram na pauta das discussões. Darwin, Nietsche, Bertrand Roussel, Sagan e muitos outros enfeitavam o bolo do conhecimento. Nietsche afirma que a objeção, o desvio, a desconfiança alegre, a vontade de troçar são sinais de saúde: tudo o que é absoluto pertence à patologia.

Para o polêmico alemão, as pessoas eram boas por medo de sofrerem as punições do cristianismo e não apenas pela natureza de serem boas. “Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal”.  Ele advogava uma vida de amor a dois, explorando o sexo e o corpo; nada deveria ser reprimido entre quatro paredes, mas sim explorado e sentido. O amor está para além do bem e do mal, ou seja, é uma coisa tão forte que não deve ser medida ou censurada, apenas vivida. O amor, nascido num lado do cérebro, é a divindade!

O amigo que ficou, com o hemisfério direito cheio de expressões saudosistas, foi em busca de respostas sensatas para o enigmático NO, encravado no lado esquerdo. Presumiu como sendo a sigla de Nietsche Obscuro, a teoria do nada. Pode ser que na antessala da esperança não haja antessala, nem esperança, só vaidade, abstrata e vazia, mas é de a natureza humana, vaidosamente, esperar. Esperar faz bem? chato é quando essa espera se estende por longos anos, podendo chegar ao nada de Alzheimer, quando o entendimento não entende, o conhecimento não conhece e a oração não resolve. “O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem, uma corda por cima do abismo. A esperança é o derradeiro mal; é o pior dos males, porquanto prolonga o tormento”. O último mal da caixa de Pandora!

O amigo que ficou, depois de muito pensar, aboliu de seu dia-a-dia frases de autoajuda e promessas de recompensas pós mortem, porquanto se convenceu que não eram oriundas do cadinho das verdades humanas: “Há uma exuberância na bondade que parece ser maldade”. O nada incomoda porque o ser, racionalmente vaidoso, quer ser, mas não quer pensar em nada, pois sabe que a vida mais doce é não pensar em nada: Vida, leva eu. “Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar”.

Certo de que a recompensa final dos mortos é não morrer nunca mais, o amigo sobrevivente, sem a resposta ambicionada, e já no leito de morte, permitiu-se um último pensamento que não era dele, mas que fora adotado, como se dele fosse: “Amamos a vida não porque estamos acostumados à vida, mas a amar. Há sempre alguma loucura no amor, mas há sempre também alguma razão na loucura. Quem tem por que viver pode suportar quase qualquer como”. E foi-se ao encontro do obscuro, convicto que este mundo é a única parte da realidade que não se deve rejeitar, lembrando que quando se coloca o centro de gravidade da vida, não na vida, mas no “além” – no nada – tira-se da vida o seu centro de gravidade.

 

*  https://www.a12.com/redacaoa12/historias-de-vida/os-dois-remos-do-barqueiro

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