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Crônica

Noite de São João


Noite de São João - Gente de Opinião

Difícil comparar o São João de antigamente com as festas juninas da atualidade. Na minha cidade natal, Senhor do Bonfim-BA, havia (ainda há, mas com restrições) uma brincadeira, única no estado - a guerra de espadas – a arma era um canudo de cerca de 3 cm de diâmetro por 30 cm de comprimento, feito com taliscas de bambu, amarradas com um barbante forte e cera de arapuá para impermeabilizar as paredes.

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O interior do canudo ficava cheio de pólvora, com um papel laminado vermelho, indicando o lado do canudo, que deveria ser aceso. Quando a gente acendia um lado, o outro, tampado com argila seca, forçava a pólvora queimada a sair barulhenta, por um orifício fino, moldado na argila, formando uma espécie de espada de fogo. Se a jogássemos adiante, elas circunvagavam sem rumo, mas com a possibilidade de queimar ou ferir os que não corressem ou não se protegessem com roupas grossas e chapéus de palha ou de couro. Hoje os guerreiros usam jeans e capacetes de moto.

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Uma grande fogueira era montada, com uma árvore fincada no centro, com cerca de 10 m de altura, onde se viam, pendurados nos galhos, os brindes, oferecidos aos brincantes pelo prefeito da cidade, que desafiava os moradores a derrubarem a árvore ainda crua, ou seja, sem que ela fosse queimada pelo fogo da fogueira, com hora marcada para ser ateado, geralmente às 22 h de 23 de junho. O brinde de maior valor ficava no topo da árvore, algo como uma nota de cem reais, protegida pra não pegar fogo.

O prefeito comprava centenas de dúzias de espadas e as entregava aos funcionários para que defendessem a fogueira da prefeitura. Vinha gente de todos os bairros e até de outras pequenas cidades da região, para derrubar a árvore plantada no centro da fogueira. Travava-se, então, uma verdadeira guerra de espadas, entre os moradores da cidade e os capangas do prefeito. O fogo das espadas, o barulho de bombas juninas e os gritos dos participantes, proporcionavam um belíssimo espetáculo visual e auditivo, exacerbando a coragem sertaneja.

Os moradores sempre ganhavam a guerra, pulavam por cima dos paus pegando fogo, trepavam e derrubavam a árvore, se antecipando ao efeito do fogo, gerando uma euforia geral em torno da árvore caída, devido à busca pelos brindes pendurados nos galhos. As baixas eram grandes e muitos acabavam a festa nos corredores e leitos do pronto socorro da cidade.

Só depois dos 18 anos nos aventurávamos a fazer parte do espetáculo, de mais perto. Conseguir arrancar um brinde da fogueira, era tarefa das mais difíceis. Nós éramos uma família de 5 homens e duas mulheres, eu era o mais novo dos homens. Lembro de um irmão mais velho que conseguiu arrancar uma galinha assada, envolvida em papel celofane, e foi comemorar com os amigos dentro da casa do prefeito, onde o quintal virava um arraial, com forró e música ao vivo, durante toda a noite.

Durante dias, meses, as esquinas e bares da cidade serão testemunhas dos mais variados comentários. Do matuto ao universitário, do vaqueiro ao fazendeiro, do comerciante ao comerciário, enfim do mais humilde sertanejo aos abastados da cidade, as opiniões se entrelaçarão como o fogo das espadas, ora elogiosas, ora críticas.

Vale lembrar que no processo de assimilação dos antigos cultos pagãos europeus, na transição da Idade Antiga para a Idade Média, a Igreja Católica acabou substituindo os rituais dedicados aos deuses médios-orientais, gregos, romanos e nórdicos, por festas oferecidas aos santos.

Afora os questionamentos e origens históricas, o meu lado romântico e nostálgico vê os festejos juninos, como a exacerbação da alegria de um povo, em meio ao sofrimento do dia-a-dia.

Do centro à periferia da cidade, houve e haverá sempre uma fogueira na porta, talvez mude a intensidade da fé, com certeza muda a quantidade de alimentos, sendo assados na fogueira. Mas ainda que haja um único cálice de licor de jenipapo, um milho, uma batata doce, um aipim, uma banana, assados numa humilde fogueira, erguida  com meia dúzia de tições, serão suficientes para abrir o sorriso e a solidariedade do sertanejo, o bastante para se desenvolver uma série de superstições e simpatias, entre elas o “batismo na fogueira”, que cria laços de apadrinhamento.  

Para os mais simples, desconhecedores do culto grego a Adônis, dono inicial da marca “24 de junho”, uma brasa que seja, acesa na fogueira, com amor e fé, será suficiente para esperar a intensificação das chuvas, no próximo ano: mais milho, mais aipim, mais mandioca, enfim, mais cor na vida do homem do campo. Para tanto eles também esperam o adjutório de São José.

Por outro lado, vejo as fogueiras de João como sinais do povo cristão, o sangue do cordeiro, e funcionam como demonstrações ao Ceifador de que eles reverenciam os mártires do cristianismo, logo merecem a salvação, algo como o céu, após a peregrinação pelos tortuosos e inexplicáveis caminhos sofridos da existência.

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As festas juninas existem em grande parte do mundo e praticamente se espalharam por todo o Brasil, são em sua essência multiculturais, mas no Nordeste, especialmente nos estados da Bahia, Pernambuco, Paraíba e Ceará parecem ter mais brilho, como se os cantos e os folguedos falassem mais alto aos ouvidos dos reverenciados: Antônio, João e Pedro!!! 

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