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Montezuma Cruz

Livro Mi Puerto viejo querido desnuda 1964 na Capital do ex-território


Livro Mi Puerto viejo querido desnuda 1964 na Capital do ex-território - Gente de Opinião

Com raríssimas exceções, poucas pessoas em Porto Velho têm na memória o que ocorreu por aqui em 1964. Em seu livro mais recente, o escritor Edilson Pereira trata do assunto, lembrando que o capitão de engenharia Anachreonte Coury Gomes, lotado no 27º Batalhão de Caçadores em Manaus, foi o ator principal no cenário do golpe militar. E o encarnou no personagem Policrates Vilela de Almeida, transferido do Rio de Janeiro para Manaus para ocultar um caso de pederastia. As Forças Armadas não toleravam homossexuais.

O quase interventor – o Exército nunca mostrou documento que o enviara oficialmente em nome do Comando Revolucionário desembarcou silenciosamente no aeroporto Caiari, de um voo procedente de Manaus no dia 28 de março de 1964, confome registra o jornalista Lúcio Albuquerque.

Na expectativa de agradar a esse comando e certo de que seria premiado com o retorno ao Rio de Janeiro, Policrates ou Anachreonte como queiram – fez o “limpa”. Prendeu diversas pessoas acusadas de comunistas por serem apenas críticas ou integrantes do grupo político oposicionista “pele curta”. Algumas delas realmente professavam a doutrina.

“Só prendem peles-curtas”, protestava a professora Marise Castiel. Segundo explicava o historiador Francisco Matias, “ser pele-curta era mais popular, com raízes nas camadas menos favorecidas da população, nos profissionais liberais, nos professores e no renatismo [seguidores do deputado Renato Medeiros].”  “A condução da política rondoniense em 64, no período, estava com a corrente pele-curta, neo-seguidor do janguismo e que havia derrotado o candidato aluizista nas eleições de 1962. Neste caso, o governador de plantão, Abelardo Mafra, era um aliado político do deputado federal Renato Medeiros, o que era raro nas relações entre o executivo e a classe política local”, acrescentava Matias em artigo.

Salvo exceções da criatividade do autor, sua obra de ficção desnuda a realidade, pois dá nomes de personagens que viveram diversas situações. A maioria morreu, e os que vivem, confirmam tudo, caso do comerciante e poeta Carmênio Barroso.

O então secretário geral de governo, Eudes Campomizzi, “pegou gripe” [por sugestão de Anachreonte] e ficou em casa até a poeira baixar. Mas Floriano Rica, Raphael Castiel, Miguel Chaquian, Oswaldo Távora Buarque, Cloter Saldanha Mota, João Lobo, Harry Covas, Eliezer Santos, José Castillo, Sinfrônio Arcoverde e Carmênio Barroso foram presos.  

Ou seja: mesmo antes da chegada e da posse do novo governador, José Luís Manuel Lutz da Cunha Menezes, em substituição ao capitão da aeronáutica Abelardo Mafra [que governou o território em dois períodos], o arrogante e desconhecido capitão vindo de Manaus fazia uma devassa na política local.

O oposicionista Mafra [era filiado ao Partido Trabalhista Nacional] recebeu um breve telegrama exonerando-o do cargo de governador em 24 de abril de 1964. Pior: ficou preso52 dias a bordo do navio Princesa Leopoldina, no Rio.  

Uma semana depois de voltar da prisão no navio, ele foi chamado ao Ministério da Guerra [nome do Ministério do Exército] e lá era ouvido pelo general Aurélio de Lira Tavares que o mandou para a reserva e até o expulsou do Exército. Dona Beatriz, esposa de Mafra, desancou o comando revolucionário numa contundente carta. Mais tarde o aposentaram na patente de general. Mas essa é outra história.

Revolução ou golpe? O historiador Francisco Matias buscava esta definição: “O dia 31 de março de 1964, uma terça-feira, seria um dia como outro qualquer em Rondônia não fosse por conta de uma notícia veiculada pela Rádio Nacional e pelo movimento nos quartéis. A matéria dava conta da deposição do presidente João Goulart e da posse de um novo mandatário da Nação, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, chefe da Revolução. Eis aí um nó difícil de desatar. Afinal, foi golpe de Estado ou Revolução? No entendimento da Direita, foi uma Revolução, haja vista ter contado com a participação da Igreja Católica e ter sido antecedida pela Grande Marcha da Família Com Deus Pela Liberdade, evento organizado pela Igreja Católica que reuniu no Rio de Janeiro milhares de donas de casa marchando contra o comunismo.”

E acrescentava: “No entendimento da Esquerda, entretanto, foi um golpe de Estado, na medida em que teve na força militar o principal instrumento de pressão e opressão, e não teria contado com a participação popular, propriamente dita. Além do mais, teve a interferência direta dos EUA, país considerado por importantes segmentos da Esquerda à época como o Grande Satã do capitalismo selvagem. De um ou de outro modo, foi um golpe de Estado e uma Revolução, mesmo porque mobilizou o país inteiro e derrubou um governo legalmente constituído, formalmente instalado, mas, de forte tendência para o socialismo soviético. Não se pode esquecer que o mundo vivenciava o início da Guerra Fria, e estava dividido entre as forças que venceram a II Guerra Mundial 19 anos antes.”

Livro Mi Puerto viejo querido desnuda 1964 na Capital do ex-território - Gente de Opinião

Talvez o autor de Mi Puerto Viejo querido não precisasse chamar de Policrates o capitão responsável pelo pagamento em quarteis amazônicos e que aqui chegou intitulando-se “agente da Revolução”.

Edilson Pereira misturou propositalmente nomes reais de pessoas, vítimas do golpe de 1964, ou partícipes na condição de colaboradores, algo palpável no caso da substituição de titulares de cargos públicos e aceitáveis em se tratando de prostitutas para as quais escolheu nomes risíveis e de frequentadores dos lupanares existentes à época.

Se o leitor local saberá distinguir quem é quem, o de fora tenderá a guardar alguma dúvida, embora, nas 221 páginas do livro estejam, instigantes, todos os ingredientes para avaliar o ridículo, o soberbo e o arbitrário que aqui pairaram no espoucar do golpe.

Os presos considerados comunistas ou simpatizantes foram alojados numa sala de oficiais da antiga 3ª Companhia de Fronteira, com alimentação servida no rancho dos graduados; membros do governo e da prefeitura foram colocados num barracão coberto de palha no quartel da Guarda Territorial.

Antes mesmo do 1º capítulo, Pereira publica uma “advertência”: Este é um livro de ficção em que figuras da história se entrelaçam com figuras que deveriam ter feito parte da história, mas, por um descuido imperdoável, decidiram aparecer apenas neste relato.”

O capitão pagador usou suas prerrogativas para ser simpático aos pais de alunos, ocupando parte do tempo em dar aulas de moral e cívica no Colégio Carmela Dutra, contava o historiador Abnael Machado de Lima, falecido em julho, três anos atrás. “Ele foi arrogante e arbitrário”, dizia Lima.

Pereira mostra o capitão na condição de “burocrata sem escrúpulos” (...) “que chegou a Porto Velho como uma sombra e se foi como uma assombração; esse sujeito poderia jogar irmão contra irmão, pai contra filho, marido contra mulher e amigo contra amigo.” Anachreonte deixou Porto Velho em 21 de abril de 1964. Mesmo sendo designado interventor em Manaus, não deu certo, e voltou ao Rio.

Reconhecido sem muita pompa militar pela “limpeza” feita em Porto Velho, Anachreonte (ou Policrates) voltou à vida normal, a seu gosto, e um dia convidou um amante para um jantar em seu apartamento. Ele próprio cozinhou, e no final foi assassinado. Saiu nos jornais do Rio, à época.

Não havia como hoje, a necessidade de o comandante do Exército ou o presidente da República se livrarem de incômodos e perigosos arquivos vivos. Afinal, perpetuava-se o golpe militar, e dele diversos atores participaram.

O autor preferiu dar outro final à história do capitão interventor: “matou-o” depois que o amante “preparou um café para ele” e negou-se a beijá-lo.

 

Trecho do capítulo 5:

Os golpistas contavam com ele. Aquilo foi música para Policrates.


“Pode deixar Rondônia comigo!”.
“Bico fechado até segunda ordem!”.
“Pode contar comigo.”

Policrates sabia que não seria grande problema. Ele sabia tudo sobre Rondônia. Naqueles primeiros meses de 1964, o Território Federal se resumia a dois municípios, a Capital Porto Velho e Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia.

Sua economia era extrativista mineral e vegetal com pequena produção agrícola e pecuária de subsistência. A representação política se resumia a um deputado federal. Não havia Câmara de Vereadores, e os prefeitos das duas cidades eram nomeados por um governador que por sua vez também era nomeado pelo presidente da República. Quase sempre oficial do Exército. Quase sempre um coronel.

Quando o plano de derrubar João Goulart já estava em marcha e chegou a hora de os militares golpistas escolherem quem mandar para Rondônia, o general Golbery do Couto e Silva mais uma vez recorreu ao general Teófilo Canabarro.

O nome estava em seu colete. Quer dizer, no bolso da farda.

 

“Como fica Rondônia?”
“Policrates é o homem para o serviço”.
“Quem?”
“Capitão de engenharia Policrates Vilela de Almeida.”
Golbery olhou mais uma vez a ficha do capitão.
“Este é o invertido que foi mandado para Manaus.”

Canabarro esperava por isso:

“Ele é bom de serviço, de confiança e fora o vício da pederastia, é competente. E tem mais, o território está
sob o comando dos esquerdistas. Policrates conhece o lugar porque está sempre lá para fazer o pagamento nos quartéis. E para finalizar, não temos outro. Sem contar que ninguém se interessa por Rondônia.”

Os argumentos eram fortes. Ninguém realmente estava preocupado com o território.  Além disso, Golbery sabia que no Exército às vezes se cometiam injustiças. Ele lembrou do episódio de sua transferência para Belo Horizonte. Aquilo foi uma injustiça. Talvez o caso do capitão fosse algo parecido.

“Onde ele está agora?”

No 27º  Batalhão de Caçadores de Manaus.”

Porto Velho não era prioridade. O homem seria Policrates. “Fale para ele ir com antecedência.”

Canabarro disse:

“Se a vitória for nossa, Policrates coloca ordem na casa. Depois mandamos alguém qualificado.” 

Golbery confiava em Canabarro, que ligou para Policrates na metade de março. Disse-lhe que ficasse de prontidão. A missão era a chance de voltar a ser alguém no Exército depois do afastamento do Rio de Janeiro.

Nos dois últimos anos não recebeu promoção. Nem menção na ordem do dia. Nem citação. Nenhuma medalha. O seu posto era quase invisível, pois não ficava em lugar nenhum. Apenas voando de um lado para outro, para fazer pagamentos.

Canabarro orientou Policrates:

“Você será agente da revolução. Chega antes, levante as condições do terreno. Mas esteja lá no dia 31 de março. Limpe a área antes da chegada do novo governador.”

 

Trecho do capítulo 22:


“O capitão Policrates era um imoral.”
“Verdade?”
“Sim”.

Ser depravado  e imoral não espantava muita gente. Ser depravado não era tão reprovável em alguns lugares do Brasil e imoralidade, desde que contida e reservada entre quatro paredes, chegava ser condimento necessário para os folguedos amorosos não caírem na rotina e no tédio. O problema era aquele detalhe que mudava tudo:

 

“Você não entendeu.”

“Entendi, sim. Ele é um depravado. Ele gosta de macho!” Claro que sempre existiram homens que gostavam de machos. Desde os tempos antigos, da Grécia e de Roma. Nos últimos séculos, no entanto, com a propagação do cristianismo pelo ocidente e do islamismo pelo oriente e na África, o uranismo passou para uma categoria abominável. As duas religiões reprovam o ato entre pessoas do mesmo sexo. O islamismo ainda mais.


Em alguns lugares onde a palavra do Profeta era reverenciada os pederastas eram jogados de muros e prédios para se esborracharem no chão.


E se não se esborrachavam, a turba furiosa terminava o serviço. Em outros eram submetidos a julgamentos sumários e condenados à morte por apedrejamento. Mais uma vez a turba comparecia com pedras e arremessos. Mas era inegável que, mesmo assim, existiam homossexuais em todos os lugares do planeta. O espanto, no caso, era saber que um capitão do Exército Brasileiro era afeminado. Ainda mais, um agente da revolução.

Naturalmente, se fosse um militar comunista seria compreensível, porque os padres diziam que os comunistas faziam lavagem cerebral, e neste caso poderia ser lavada a parte masculina do cérebro da pessoa e ele ficava afeminada. Mas não era aquele caso.

 

A parte da cidade que ignorava as predileções do capitão estremeceu de espanto:

“Um agente da revolução? Bonequinha de luxo! Não acredito.”
“Pois acredite. É notícia que vem de Manaus.”

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