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Montezuma Cruz

ALIMENTO PARTILHADO


Um exemplo da fraternidade amazônica

MONTEZUMA CRUZ
Agência Amazônia

RIO PURUS, Amazonas – Chove desde cedo. Passa de 15h30 e o barco deixa as águas barrentas do Rio Acre para entrar em outras águas barrentas – do rio Purus. Árvores, grandes barrancos e capelas compõem a paisagem deste pedaço do sudoeste amazônico. Um caboclo magro dá voltas em torno da embarcação. Acompanhado pela filha menor, molhada, tiritando de frio, ele sorri, silencioso. Desliga o motor de popa, aproxima-se e continua sem nada dizer.

No barco, os passageiros comem churrasco de frango e carne bovina. O canoeiro encosta, olha algumas vezes para as pessoas, até que alguém lhe pergunta das condições do rio e se tem chovido muito na região. Ele responde e emenda uma conversa, observando o alegre almoço dos passageiros. Nada pede. A viagem prossegue pela imensidão desse grande rio. 

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Dois passageiros lhe oferecem carne


Cinco minutos depois, dois passageiros lhe oferecem comida. Sentada na proa da pequena canoa, a filha apanha um pequeno balde plástico e o pai o entrega à pessoa que lhe entrega porções do churrasco. Sorri novamente, demonstrando gratidão.

Nem perguntamos os nomes dele e da filha; se a menina freqüentava alguma escola, se algum médico ou dentista aparecera no lugar, de que modo, afinal, viviam nesses confins. Os passageiros observam o seu jeito simples.

Dono da situação, o canoeiro e a filha vão embora. Quinze minutos depois, olhamos à esquerda para o barranco e notamos o ato de fraternidade do caboclo: distribuíra toda a carne às pessoas ao lado da palhoça. Parentes, amigos? não importa. Umas cinco pessoas comem e acenam para os viajantes que seguem para Boca do Acre. 

Um pouco do cenário amazônico 

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Ele recebe e agradece
Joaquim Ribeiro, em Os Brasileiros, ensina: a iluminação das casas de caboclo ainda é feita com candeias e lamparinas, alimentadas com azeite de andiroba. A andiroba é, pois, uma das árvores mais úteis da Amazônia.

Quase sempre ao lado das casas de caboclo erguem-se palanques, onde se fazem hortas, a fim de livrá-las das enchentes. A esses palanques chamam comumente jiraus e, quando são grandes, podendo conter além de hortas pequenos currais de gado, denominam-se marombas.

Não raras vezes, quando a cheia é violenta, essas marombas são arrastadas pela correnteza como verdadeiras ilhas flutuantes. Na Amazônia, na hora do pôr-do-sol, o caboclo costuma fechar a casa e fazer em torno dela a fumaça. É uma prática destinada a afugentar os carapanãs, os terríveis mosquitos da região beira-rio. 

Bichos domésticos e de caça

Quem se aproxima de uma casa de caboclo tem logo atenção voltada para os xerimbabos, que constituem a criação caseira. São bichinhos domésticos ou domesticados: papagaios, araras, passarinhos e outras aves, jabotis. Entre eles figuram os macacos. O mais comum, o barrigudo, com o qual as crianças gostam de brincar. 
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Tipiti, feito de talas de palmeira /COME-SE.BLOGSPOT.COM


Bem estimados são outras castas de macacos: o coatá, apreciado pela carne saborosa; o macaco-prego, o macaco inglês de pelo avermelhado, também chamado caiarara, o macaco cabeludo ou parauacu e o macaco de cheiro, bastante catinguento.

Os sagüis numerosos vivem soltos pela habitação. Entre os xerimbabos costumam ter uma jibóia, cobra escura de pintas negras. Não é venenosa e defende a casa contra os ratos. Dizem os caboclos que a jibóia, por vezes, alcança cerca de 12 metros e, depois de velha, foge para o fundo do rio e nunca mais volta.

Uma nota típica da casa de caboclo é a riqueza de cestaria. Os cestos são os móveis do homem da Amazônia. Geralmente fazem os cestos com os talos de arumanduba ou de jacitara. É pitoresca a variedade desses cestos.

O uru, feito de talos, com tampa, serve para guardar miudezas: cachimbo, tabaco, fósforo etc. Nos paneiros, grandes ou pequenos, guardam farinha d'água. Os aturás, da forma dos paneiros, destinam-se a conduzir da roça à casa mandioca e outros produtos da terra. Para transporte de roupas nas viagens usam-se cestos cônicos, chamados panacus.

Vestígios da Ameríndia 

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Quebra da castanha /M.CRUZ
Em toda casa há sempre uma arupema ou gurupema, espécie de peneira, onde se coam o açaí, a mandioca, a bacaba etc. Persiste ainda, na Amazônia, o uso do tipiti, cilindro feito de talas de palmeira que, esticado nas extremidades, serve para espremer a mandioca brava. É vestígio da prensa ameríndia, utilizada no fabrico da farinha.

Os caboclos dormem, de regra, em redes feitas de tucum ou de algodão. Algumas delas têm varandas, isto é, abas ornamentais, às vezes feitas de chita. Essas redes apresentam desenhos coloridos que revelam a arte decorativa da tecelagem regional. Usam também esteiras ou tupés como singelos meios de repouso doméstico.

Embora rústica, a casa do caboclo quase sempre é cheirosa. É que costumam queimar ninho de cunauru, o qual exala um perfume bastante agradável. O cunauru é um sapo que curiosamente faz ninho de matérias reinosas por ele mesmo segregadas. Tem a forma de uma panelinha. O caboclo utiliza-o mais pelo seu atributo sobrenatural de trazer felicidade do que pela ação odorífera.

A poterie do caboclo , além de rudimentar, não possui nenhuma originalidade. É pobre e contrasta com a riqueza da cerâmica, utilizada pelos ameríndios da planície. O fogão do caboclo, o tacuruá, consiste em três pedras dispostas em triângulo sobre as quais se assenta a panela. Fica sempre fora de habitação.

Mandioca é tudo 
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Riqueza do caboclo e do Brasil /SÉRVULO COSTA


A mandioca é a base da alimentação do caboclo. Com ela fazem numerosos recursos alimentícios. Os beijus feitos de mandioca substituem o pão e apresentam vários tipos: o beiju-açu, o beiju-puquena, o beiju-curuba (feito de massa de castanha-de-caju ralada), o beiju-cica, o beiju-membeca. Para os doentes, há o caribé, mingau sem sal, de farinha d'água.

Bem conhecidos são o tacacá, o tucupi e o arubé. Tacacá é goma de tapioca misturada ao tucupi, fervido com alho, sal, camarão, jambu e pimenta de cheiro. É muito comum em Belém do Pará. Tucupi ou tucupi de sol é um molho picante, feito com caldo de mandioca fervido. Usa-se como acompanhamento de diversos pratos. É muito apreciado: tartaruga no tucupi, paca no tucupi etc.

Arubé é massa de mandioca com sal e pimenta. Faz às vezes de mostardas. Para os caboclos da Amazônia , grande fonte de sua economia alimentar está na pesca. Entre outros peixes mais apreciados pelos caboclos figuram o pacu e o pirarucu. O pacu no tucupi constitui um prato excelente.

O pirarucu, igualmente, é saboroso. Com as suas vértebras dorsais e as suas tripas fazem ainda um guisado muito gostoso: o querequê. Da língua do pirarucu fazem ralador. Apreciam também o piraíba, que é o maior peixe da Amazônia. 

Tartaruga e ovos 

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Tartaruga rende pratos diversos /REVISTA NOSSO PARÁ
O prato predileto do caboclo, entretanto, é a tartaruga. Com ela, fazem-se várias formas de comida: o guisado, o sarapatel, o paxicá, o picado no peito, a farofa no caco. Cunhamuçu é a tartaruga que se come assada inteira.

Há uma pequena tartaruga, a muçuã, também muito saborosa. Dizem os caboclos que o macho da tartaruga – capitari – possui carne mais gostosa que a fêmea. Apreciam , sobretudo, os ovos de tracajá certa casta de tartaruga.

Não há dúvida que o prato mais saboroso da tartaruga é a farofa no casco. Retirado as vísceras, o casco da tartaruga é temperado com sal e limão. Em seguida, levam-no ao forno, produzindo–se farta gordura. Ajunta-se farinha d'água e faz-se a farofa. Durante vários dias o casco dá gordura.

Afirmam os caboclos que o fígado do jaboti fica mais gostoso se jogar o jaboti três vezes para o ar. Comem jacaré; sobretudo o rabo, que é mais gostoso. E das três espécies: o jacaré-açu, o jacaré-coroa, e o jacaré-tinga, preferem o último.

Aves não faltam no menu do caboclo. As mais apreciadas são o jacu e o macucava. Há várias espécies de jacu: jacu-pema, o jacu-vermelho e o jacu-pintado. Tem o gosto de faisão. O macucava é considerado a perdiz das Amazônia.

Apreciam, igualmente, os filhotes de jaburu salgados. Caças não são raras: a paca, o caetetu etc. Até a içá, formiga tanajura, serve de alimento. Comem-lhe o traseiro e dizem que tem um bom sabor. Um prato típico de gente ribeirinha é a panelada de maniçoba. Entra mocotó, língua salgada, tripa, cabeça de porco e outros ingredientes. A panelada geralmente é feita por ocasião de festas.

Fonte: Montezuma Cruz - A Agênciaamazônia é parceira do Gentedeopiniao

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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