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Montezuma Cruz

Acre sonha com a união do saber nativo e o saber dos doutores


MONTEZUMA CRUZ (RIO BRANCO, AC) – Lado a lado, sobre uma canoa, sacos de sementes de jarina, ipê-amarelo, jutaí, castanheira, murumuru, copaíba, cedro, seringueira, açaí, bacaba e buriti apontam para o sentido didático da Biblioteca da Floresta Ministra Marina Silva, um lugar onde é possível tornar realidade o sonho de colocar em pé de igualdade o pajé e o doutor. 

As amostras dessas sementes ficam na Exposição Nossa Terra, no Espaço dos Povos da Floresta, próximas às peças de vestuário, armamento, cerâmicas, vestimentas e ornamentos produzidos e usados pelos índios Ashaninka, Jaminawa Arara, Katukina, Poyanawa, Madija, Manchineri, Apolima Arara, Jaminawa, Kaxinauwa, Nawa, Nukini, Yawanawa, Apolima, Kaxarari, Shanenawa e Arara.

As sementes servem para fins medicinais, enriquecimento nutricional, para o aumento da renda familiar, produção de artesanato, instrumentos musicais, armamento, construção de moradia e para a fabricação de utensílios domésticos.

Financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e inaugurada no ano passado, a biblioteca expõe dezenas de livros de filosofia, antropologia, história, geografia, geologia, e das religiões da floresta. Oferece estudos e painéis sobre fósseis da megafauna regional, destacando-se o do purussaurus, jacaré gigante encontrado no Acre. Quando concluída, terá 40 mil livros. Acre sonha com a união do saber nativo e o saber dos doutores - Gente de Opinião

Também se aprende a respeito dos geoglifos, vestígios arqueológicos representados por desenhos geométricos (linhas, quadrados, círculos, octógonos, hexágonos etc.), zoomorfos (animais) ou antropomorfos (formas humanas). O Acre tem cerca de cem geoglifos.

Bem visto do alto, em sobrevôos, esse fenômeno é encontrado em várias partes do mundo. Os mais conhecidos e estudados estão na América do Sul, principalmente na Bolívia, no Peru e na região andina do Chile. Para o governo estadual, a biblioteca será referência mundial na pesquisa da sustentabilidade. Daí, a sua trajetória implicar um leque bem maior.

Até o final deste ano, a equipe pretende inserir no acervo digital cerca de três mil textos, gravações, reproduções e audiovisuais, informa um dos colaboradores, o jornalista, professor, filósofo e ex-deputado federal Marcos Afonso. A equipe trabalha sob a coordenação de Carlos Edegard de Deus, do Departamento de Diversidade Ambiental, da Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansur. 

Acre sonha com a união do saber nativo e o saber dos doutores - Gente de OpiniãoConhecedores da floresta

O Acre vive situações instigantes, mas ainda não responde por que razão não há tese esclarecendo o fato de o seringalista, dono da produção, não acreditar que fosse latifundiário. Segundo o jornalista Elson Martins, um dos responsáveis pelo site da biblioteca, quando o capital internacional desapareceu pela oferta dos seringais de cultivo da Malásia, restaram no Acre os seringueiros, profundos conhecedores da floresta. "Eles souberam se manter dentro dela. Sem aporte financeiro, os seringalistas não tiveram condições de sobreviver, e a Amazônia foi então segura por seringueiros e ribeirinhos", explica.

Aos 68 anos, o ex-editor do Varadouro – o jornal das selvas que se notabilizou no final dos anos 1970 – esnoba ânimo e fôlego para galgar os próximos degraus na escalada do conhecimento da realidade amazônica. "Sou um produto do seringal e na maturidade descobri que vou atuar, daqui para frente, na direção da Universidade da Floresta", desabafa Martins. "Vamos abrir espaço para a irreverência, com a permissão para a descoberta do futuro", promete.

"Somos capazes de entender a modernidade e rir dela", garante. Justifica o raciocínio, lembrando que, muito antes da construção da fábrica de preservativos com látex de seringal nativo em Xapuri havia um fabricante de camisinhas em Plácido de Castro. Seus olhos brilham também ao lembrar outro lugar onde trabalhou por mais de dez anos: o Amapá. Ali ele redescobriu o esquecido Padre Nosso do Seringueiro, de autoria de Jaime Araújo, índio potiguar adotivo, criado por cearenses. 

Martins recorda que na tarde de 17 de outubro de 1985 Araújo encantou estudantes, intelectuais e políticos de Brasília, ao anunciar a existência dos Povos da Floresta. "Ele emergiu como um duende das matas, lendo poemas e rezando a oração dos seringueiros que ele mesmo escreveu, sendo aclamado presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros criado naquela ocasião". 

Textos de Araújo foram reproduzidos na Europa. A Universidade de Brasília (UnB) o convidou para dar aulas de História (da Amazônia). Mesmo sem formação universitária, lecionou durante um ano e meio.

Padre Nosso do Seringueiro Acre sonha com a união do saber nativo e o saber dos doutores - Gente de Opinião

Seringueira que estás na selva
multiplicados sejam vossos dias
venha a vós o vosso leite
Seja feita a nossa borracha
Assim na prensa como na caixa
Para o sustento de nossas famílias
nos dai hoje e todos os dias
Perdoai nossa ingratidão
Assim como nós perdoamos
As maldades do patrão
E ajudai a nos libertar
Das garras do regatão
Amém!

Uma aula na Sala do Saber

Até quem já esteve num seringal nativo se emociona ao deparar com a seringueira trabalhada em madeira. Além dela, na parede estão expostas a tigela (para coleta do látex); a poronga (que ilumina as trilhas); a cabrita (usada no corte da árvore); a raspadeira (para a limpeza dos canais) e o balde – todos de uso secular. Entre os cinco diferentes cortes da seringueira, chama a atenção o recurso do "seringueiro malvado", que produz mais látex em menos tempo, embora mate a árvore. 

Acre sonha com a união do saber nativo e o saber dos doutores - Gente de OpiniãoO acesso ao acervo pode ser feito pela leitura e pesquisa local, empréstimo domiciliar, palestras, debates e exposições permanentes sobre os povos indígenas do Acre, o Zoneamento Ecológico-Econômico, coleção especial sobre as iniciativas lideradas pelo líder seringueiro Chico Mendes, e um espaço destinado a exposições temporárias.

▪ A Biblioteca está aberta ao público todos os dias nos seguintes horários:
Segunda a sexta-feira: das 8 às 21 h;
Sábado: das 14 às 20 h;
Domingo e feriados: das 16 às 20 h (apenas visita às exposições).
CNL/Parque da Maternidade, s/nº Centro 69900-000 – Rio Branco (AC)
Telefone: + 55 68 3223 9939
E-mail: [email protected]

Veja o site da Biblioteca

Fonte: Montezuma Cruz - Agênciaamazônia é parceira do Gentedeopinião.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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