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Montezuma Cruz

Acre desapropria, mas não assenta


Governador diz que o estado está conturbado, mas quer migrantes. SNI vê a Contag “subversiva”

MONTEZUMA CRUZ
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BRASÍLIA — Oitenta por cento das terras acreanas foram vendidas a preços baixos para investidores do Sul, sem a regularização fundiária do Estado. Cerca de 90% da população vive do subemprego e 70% não têm acesso aos benefícios da Previdência Social. A realidade constatada no Acre entre 1975 e 1977 incorporou-se aos capítulos da CPI da Terra. Apesar de o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) haver discriminado, arrecadado, matriculado ou desapropriado seis milhões de hectares, dos 15,2 milhões pelos quais se estende o estado, não expediu mais que 4,8 mil títulos.
Esse volume abrangia 138,8 mil ha (numa média de 30 ha por título), uma situação que só reforçou os bolsões de minifúndio numa estrutura latifundiária. O arcebispo da Prelazia Acre e Purus, dom Moacyr Grechi, denunciava, o Incra reagia, o governo via nascer um sindicalismo forte nesse estado de 153 Km², correspondente a 3,2% da Amazônia brasileira e 1,8% do território nacional.
Acre desapropria, mas não assenta - Gente de OpiniãoA Coordenadoria Regional do Incra (CR-14) admitia a gravidade dos conflitos no campo; classificava os empresários sulistas de “desavisados”, “despreparados” ou mal intencionados. Eles sonegavam os direitos dos seringueiros, oferecendo-lhes indenizações irrisórias. Quatro anos depois da CPI, em 1981, o Incra só havia reconhecido a existência de 154 imóveis, compreendendo 134 mil há. Uma média de mil hectares por imóvel.
Historicamente, o crescimento populacional acreano obedeceu a movimentos migratórios determinados por efeitos de políticas públicas. A primeira grande leva de imigrantes ocorreu na década de 40, quando os nordestinos encontraram na extração da borracha uma maneira de não servir na II Guerra Mundial. A partir da década de 70, com a abertura de estradas e a expansão da atividade pecuária, o estado recebeu migrantes das regiões Centro, Sul e Norte do País. Em 30 anos, a população total subiu de 215 mil habitantes para 547 mil habitantes – 65% na área urbana e 35% na área rural.
SNI espiona a Contag
Acre desapropria, mas não assenta - Gente de OpiniãoDesconsiderados nos atos de transação das terras, seringueiros e posseiros criavam conflitos. Sindicatos e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), sob a liderança de João Maia, passaram a enviar denúncias aos órgãos de segurança. E abriam os olhos dessa gente para as leis agrárias do País. Não demorou para que o Serviço Nacional de Informações (SNI) espionasse e atacasse o órgão. Era mais fácil enfraquecer a Contag, acusando-a de subversão. “Ela agita os posseiros”.
Quatro anos depois da CPI da Terra, em 1981, diversos líderes sindicais, entre os quais Luiz Inácio Lula da Silva, responderam a processos por “crime contra a segurança nacional”. O então presidente da Federação da Agricultura do Acre (órgão patronal), Francisco Diógenes de Araújo, que também era representante da Volkswagen e na época cursava a Escola Superior de Guerra, centrava suas acusações na Prelazia do Acre e Purus, na Contag e no próprio governo estadual: “Eles estão conduzindo o Acre a uma autêntica revolta social, segundo os cânones marxistas”. Na época, o estado era governador por Joaquim Falcão Macedo. Araújo.
A Igreja e a Contag refutaram essa estranha união. Afinal, só estavam juntas com o governo acreano para buscar acordos que solucionassem os conflitos de terra. O próprio governador cuidou de se explicar, numa reunião do Conselho Deliberativo da Sudam, em Belém. Tratava-se, segundo ele, de uma revolta dos proprietários rurais, a maioria sulistas, “contra a demagogia e a ineficácia da administração estadual, e a subversão da Igreja e da Contag”.
Cuidou, no entanto, de esclarecer que a pecuária extensiva estava se tornando prejudicial ao extrativismo no Acre, porque provocava desmatamento, seguidos de grandes queimadas.
Resistência e êxodo
Por duas vezes, na BR-364, seringueiros e agricultores embargaram desmatamentos para a formação de pastagens e reivindicaram seus direitos de posse. No Seringal Carmem, em Brasiléia, 50 seringueiros forçaram um acordo com os proprietários das terras, exigindo como indenização lotes que variavam de 30 a 50 hectares.
Em Extrema, na divisa do Acre com Rondônia, houve tiroteio. Apesar de sua riqueza madeireira, 30 anos depois essa região querida e ao mesmo tempo desprezada motivou durante algum tempo uma disputa entre os dois estados. Na década de 80 os ânimos se exaltaram. Por pouco não entraram em choque as tropas militares acreanas e rondonienses.Acre desapropria, mas não assenta - Gente de Opinião
No Km 104 da estrada Rio Branco-Boca do Acre (BR-317), os conflitos pela posse se acentuaram na Fazenda Paraná, de Rômulo Bonalume.  Jagunços ameaçavam constantemente os posseiros. O posseiro José Evaristo, hospitalizado após sofrer perturbações mentais, juntou-se a outros e tentou matar os fazendeiros. A partir daí, além dos jagunços, passaram a sofrer perseguições policiais.
Inchaço de Rio Branco
Conseqüências ainda mais graves surgiram em seguida: marginalização, desemprego e inchaço da periferia de Rio Branco.  Alguns procuraram empregos em fazendas, nos serviços temporários de desmatamento. Muitos se mudaram para a Bolívia e o Peru e nesses países encontraram condições de continuar trabalhando na extração da borracha. Entre 40 mil e 45 mil pessoas atravessaram a fronteira naquele período.
O então secretário de Fomento Econômico do Estado, José Fernandes do Rego, desabafava: “Nenhuma unidade da Federação Brasileira, incluindo os territórios federais, ocupa situação de maior dramaticidade que a do Acre em relação à questão agrária”. Os números demonstravam isso: 98,4% das propriedades tinham mais de mil hectares e 85,3% das pessoas empregadas no setor primário trabalhavam em propriedades alheias.
A capital ainda concentra o maior número de habitantes: 50% do total. A população indígena acreana, atualmente estimada em 9,3 mil pessoas, constitui 1,4% da população estadual. É formada por 12 diferentes povos que falam as línguas Pano, Aruak e Arawá. O governo federal já reconheceu 28 terras indígenas e desse total, 17 áreas representam 71,3% da extensão do território indígena existente no Estado, todas homologadas por decretos presidenciais.
NOTA
A CPI do Sistema Fundiário em 1977 teve 63 audiências públicas e igual número de depoimentos de religiosos, empresários, sociólogos, advogados, técnicos e de dois jornalistas. Na defesa dos posseiros atuavam a Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Igreja Católica, e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).   
Fonte: Montezuma Cruz - Agenciaamazonia é parceira do Gentedeopinião.

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