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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Educação para a emancipação - e para a autonomia (1)


Educação para a emancipação - e para a autonomia (1) - Gente de Opinião

Este texto tem um formato diferente, com o uso de poucas notas de rodapé e com as questões sob debate demarcadas como títulos entre uma citação direta e outra. Na verdade, pela lógica simples, a educação para a autonomia exige a emancipação. Sob o judice da opressão ninguém é livre, ninguém toma decisão alguma – como vemos numa aproximação simples ao suposto ao termo:

1.      EMANCIPAÇÃO – retirar o jugo

2.      EMANCIPAÇÃO POLÍTICA – participar de instâncias de decisão

 

A lógica, então, nos exige ter na emancipação o ponto de partida, a essencialidade da ação, pois, sob a opressão, não há formas legítimas de regulação, normalização (normatização), dominação. Sob a opressão vigora a prescrição. Neste sentido, a Autoeducação Política para a descompressão nos exige a proscrição de todas as formas autoritárias, autocráticas, de negação da emancipação e da autonomia. Em seu livro Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire (2021) nos confere, logo pelo índice, 29 lições básicas de quem se aventura pela educação não-opressiva, ou seja, que seja devotado/a à descompressão das pessoas. Para efeito didático, vamos listar o índice para em seguida promovermos um diálogo com o livro, publicado em 1996.

1.      Ensinar exige rigorosidade metódica

2.      Ensinar exige pesquisa

3.      Ensinar exige respeito aos saberes dos/as educandos/as

4.      Ensinar exige criticidade

5.      Ensinar exige estética e ética

6.      Ensinar exige a corporificação das palavras pelo exemplo

7.      Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação

8.      Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática

9.      Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural

10.  Ensinar não é transferir conhecimento

11.  Ensinar exige consciência do inacabamento

12.  Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado

13.  Ensinar exige respeito à autonomia do ser do/a educando/a

14.  Ensinar exige Bom Senso

15.  Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos/as educadores/as

16.  Ensinar exige apreensão da realidade

17.  Ensinar exige alegria e esperança

18.  Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível

19.  Ensinar exige curiosidade

20.  Ensinar é uma especificidade humana

21.  Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade

22.  Ensinar exige comprometimento

23.  Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo

24.  Ensinar exige liberdade e autoridade

25.  Ensinar exige tomada consciente de decisões

26.  Ensinar exige saber escutar

27.  Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica

28.  Ensinar exige disponibilidade para o diálogo

29.  Ensinar exige querer bem aos/às educandos/as

 

Não devemos nos escusar, esquecer, sermos complacentes com a negação dessas ações:

Formação científica, correção ética, respeito aos outros, coerência, capacidade de viver e de aprender com o diferente, não permitir que o nosso mal-estar pessoal ou a nossa antipatia com relação ao outro nos façam acusa-lo do que não fez, são obrigações a cujo cumprimento devemos humildade, mas perseverantemente, nos dedicar[1].

 

Lembrando que neste livro Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire considera já instituída (filosoficamente) a lição compromissada no seu Pedagogia do Oprimido (Freire, 2022). Daí, portanto, falar em autonomia, como se a emancipação fosse um “dado filosófico” reconhecido, aceito, ou ao menos já estivesse compreensível. Esta é, por assim dizer, a consciência primária que precisamos reter se entendemos que a educação é um processo de reflexão e de ação (práxis) – como educação crítica para a práxis, e que, por sua vez, é composta de reflexão e de ação.

O alerta que se fazia no final do século XX, para as investidas do capital no próprio discurso da autonomia, mostraram-se proféticos: do individualismo à dessocialização – em que se fratura até mesmo a consciência primária –, hoje, sob a batuta das redes antissociais, da total precarização do trabalho (uberização), o nível da consciência se parece com o “cada um por si, e salve-se quem puder”. Naturalizou-se a desumanização, como fluxo da “naturalização da exceção”, sem mais combater, inversamente, as práticas da desumanização, exploração: o que nos obriga celeremente a uma Educação para além da exceção. E quando, na verdade, requeria-se emancipação e autonomia para se fortalecer a interação social: “Para tal, o saber-fazer da autorreflexão crítica e o saber-ser da sabedoria exercitados, permanentemente, podem nos ajudar a fazer a necessária leitura crítica das verdadeiras causas da degradação humana e da razão de ser do discurso fatalista da globalização[2].

A revolta e a indignação contra a negação da dignidade humana não podem justificar qualquer forma de sectarismo e de terrorismo.

Daí a crítica permanentemente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia. Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo [...] O meu ponto de vista é o dos “condenados da Terra”, o dos excluídos.[3].

 

A Ética condena o materialismo ingênuo, o dogmatismo, a incoerência (Debrun, 2001), o farisaísmo, o sectarismo, a hipocrisia, tanto quanto combate o cinismo, oportunismo, golpismo.

E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõem a responsabilidade.

A crítica é “natural”, não tem limitação se for honesta (também gentil). Lembrando-se que não se debate com fascistas, mas sempre sobre o Fascismo.

De uma coisa qualquer texto necessita: que o leitor ou a leitora a ele se entregue de forma crítica, crescentemente curiosa[4] e criativa.

Só ensina quem aprende, pois, quem forma se reforma.

É preciso que [...] desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma, ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado [...] Não há docência sem discência [...] Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender [...] É por isso que, do ponto de vista gramatical, o verbo ensinar é um verbo transitivo relativo. Verbo que pede um objeto direto alguma coisa – e um objeto indireto  - a alguém [...] Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa, e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar[5].

 

O “objeto” ensinado leva consigo o sujeito – que aprende, porque apreende.

Neste caso, é a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso ensinar. Esta é uma das significativas vantagens dos seres humanos – a de se terem tornado capazes de ir mais além de seus condicionantes[6].

 

Ensinar exige rigorosidade metódica.

Educadores/as progressistas precisam estudar, inclusive o que é democracia.

Uma de suas tarefas primordiais é trabalhar com os educandos a rigorosidade metódica com que devem se “aproximar” dos objetos cognoscíveis [...] nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo. Só assim podemos falar realmente de saber ensinado, em que o objeto ensinado é apreendido na sua razão de ser e, portanto, apreendido pelos educandos[7].

 

O intelectualismo e o papagaio de piratas recitador nada agregam ao sentido do mundo a ser transformado.

O intelectual memorizador, que lê horas a fio, domesticando-se ao texto, temeroso de arriscar-se, fala de suas leituras quase como se estivesse recitando-as de memória [...] Fala bonito de dialética mas pensa mecanicistamente. Pensa errado. É como se os livros todos a cuja leitura dedica tempo farto nada devessem ter com a realidade de seu mundo[8].

 

Não se faz Ciência sem afrontar o paradigma – só reprodutivismo.

Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez velho e de “dispõe” a ser ultrapassado por outro amanhã [...] Ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente[9].

 

Ensinar exige pesquisa.

Se não há Ciência sem crítica, é óbvio, não pode haver Ciência sem pesquisa. Não há conhecimento sem pesquisa, não há educação sem pesquisa.

Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo [...] Pensar certo, em termos críticos, é uma exigência que os momentos do ciclo gnosiológico vão pondo à curiosidade que, tornando-se mais e mais metodicamente rigorosa, transita da ingenuidade para o que venho chamando “curiosidade epistemológica” [...] Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando.

 

Ensinar exige respeito aos saberes dos/as educandos/as[10].

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos na prática comunitária –, mas, também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos [...] É pergunta de subversivo, dizem certos defensores da democracia. Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida?[11].

 

Ensinar exige criticidade.

A criticidade se desenvolve com a curiosidade e essa é provocadora da criatividade. Elementos esses que, por sua vez, juntam-se ao método da Intuição.

A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta, faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos[12].

 

Trata-se da curiosidade crítica de quem procura o sentido não-legitimado, para muda-lo, significado espalhado pelo mundo dos tempos pós-modernos do século XXI, mas sem se ver domesticado pela globalização dos meios tecnológicos que promovem a fuga do humano (desumanização). Como se dizia antigamente, a curiosidade crítica nos protege do “fetiche tecnológico” – que não deixa de ser um adiantado “fetiche da mercadoria”.

Curiosidade com que podemos nos defender de “irracionalismos” decorrentes do ou produzidos por certo excesso de “racionalidade” de nosso tempo altamente tecnologizado [...] é consideração de que, de um lado, não diviniza a tecnologia, mas, de outro, não a diaboliza[13].

 

Desse modo, vê-se que o contrário/antagônico ao positivismo (ou sectarismo) não é o subjetivismo, é a subjetividade que não cede aos ameaços ou negações provindas de todas as formas de prescrição (negação ou afirmação da exceção). O contrário do positivismo que segrega sujeito e objeto – objetificando-se o saber-fazer – é a proscrição da prescrição na fase em que se alinham o saber-fazer e o “fazer-se política”. A atenção maior, primordial, neste caso, seria atentarmos para o fato de que sem emancipação[14] não há autonomia responsável, integral – e sem isso somos condenados a todas as formas obscuras de opressão, exclusão, exceção.

Na metáfora da submersão à emersão, a emancipação subjetiva é aquela que corresponde à Autoeducação política para a descompressão, enquanto atua o indivíduo que se reconhece como sujeito da história, ao ser apresentado à história feita e sendo feita, e ao fazê-la, enquanto faz parte. É interessante notar que a história, enquanto passado, é presente, uma vez que as condições reais de existência são dadas, tanto quanto podem ser modificadas.

Portanto, como sujeito da história – de sua história, tanto quanto lhe é possível ser –, o sujeito da Autoeducação política para a descompressão é parte e é um agente atuante da transformação.

É dessa passagem da imersão à emersão, do senso comum ao Bom Senso (senso crítico), que o indivíduo – muitas vezes isolado na sua própria negação – vai gradativamente “tomando para si” a compreensão, o entendimento dos fatos, das situações, das causas e dos efeitos, e os transformando em conhecimento: vemos aqui, ainda, a transformação das informações parceladas (até então) do meio, de si, dos demais, em conhecimento de si e dos outros (da realidade).

É esse conhecimento que será posto à prova, no realismo político, ao se defrontar este sujeito com o indivíduo que agora não quer mais ser, bem como diante das condições objetivas que passam a ser parte da luta que empreende, a fim de se confrontar a compressão individual, social, política, moral, econômica, cultural, ambiental (societal), e, nesta mesma luta política, almejar a emancipação subjetiva e objetiva. Nesta fase, é possível visualizar como o sujeito transplanta o indivíduo (que fora, e como espelho de muitos que ainda são), ao passo em que labora e revoluciona o Bom Senso em senso crítico (aplicado a si, na autocrítica, e na realidade objetiva).

Não é difícil perceber que essa práxis (reflexão/ação) também comporta dois movimentos, duas parcelas justapostas, entre a subjetividade e as condições objetivas.

Quando se dissociam emancipação e autonomia, autônomo é o Uber e o consumidor dedicado ao clique do celular, por exemplo. Porém, não são emancipados em nada, um não tem direito algum, o outro consome por compulsão.

 

Referências

Debrun, Michel. Gramsci: filosofia, política e Bom Senso. Campinas/SP, Editora da Unicamp, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022.

OLIVEIRA, Edna Castro. Prefácio. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.

 



[1] Freire, op. cit., 2021, p. 18.

[2] OLIVEIRA, Edna Castro. Prefácio. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021, p. 13.

[3] “Educadores e educandos não podemos na verdade, escapar à rigorosidade ética [...] Em escala internacional começa a aparecer uma tendência em acertar os reflexos cruciais da ‘nova ordem mundial’ como naturais e inevitáveis [...] Não podemos nos assumir como sujeitos da procura da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos” (Freire, op. cit., 2021, p. 16-19). Nascia aí, na ordem econômica, a tendência à “normalização da exceção” – normatizada, por exemplo, na reforma trabalhista de 2017. Porém, para além disso, atualmente, está em todos os setores da vida, em especial na Educação financeira que se pratica na escola pública – para atender crianças e jovens pobres e famintos. A incoerência não poderia ser maior, se não prevalecesse o único objetivo de adesão fatal ao rentismo.

[4] Freire, op. cit., 2021, p. 21.

[5] Freire, op. cit., 2021, p. 25-27.

[6] Freire, op. cit., 2021, p. 27.

[7] Ibid., p. 28

[8] Ibid., p. 29-30

[9] Ibid., p. 30 – grifo nosso.

[10] Por mais que haja sapiência, nada justifica um oráculo na sala de aula. Todo mundo tem o dever intelectual de aprender (aprender a aprender), afinal, sem aprender não se apreende (aprender a apreender).

[11] Freire, op. cit., 2021, p. 31-32 – grifo nosso.

[12] Ibid., p. 33 – grifo nosso.

[13] Freire, op. cit., 2021, p. 33-34 – grifo nosso.

[14] Freire, op. cit., 1985.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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