Segunda-feira, 10 de novembro de 2025 - 14h14

1. Ao relacionar o “Bom Senso” ao senso crítico, o Senhor sugere uma educação baseada na reflexão ética e social. Como essa concepção dialoga com o projeto de uma educação libertadora e com os ideais de bell hooks, Paulo Freire e outros pensadores críticos da América Latina?
Exatamente, o Bom Senso (como capacidade humana de agir de forma ponderada, equilibrada, diante dos fatos e do ato de aprendizagem), por força da lógica, torna-se, ao longo da experiência no Mundo da Vida, uma reflexão prática (uma sabedoria popular[1]), também intuitiva (com liberdade, muita criatividade[2] e crítica), e, por isso, se de fato há uma constância no equilíbrio entre tomar decisões razoáveis (racionais, como meio, medium, de equilíbrio nas ações), com ponderação, análise acerca das implicações e das responsabilidades futuras – projetando-se possíveis consequências, “antecipando-se por dedução”, aplicando-se o modo da prevenção, precaução (teleologia) –, acaba por se converter em senso crítico; afinal, não se faz tudo ao bel prazer, na toada das impulsões ou das paixões irrefletidas. Requer-se Prudência, em uma palavra. Não há senso crítico que se desligue da Prudência – e isso vemos até mesmo no Maquiavel, d’O Príncipe: “vertú contra furore” (ao tomar para si, na conclusão final, um poema de Petrarca). Isso é fundamental, é a premissa do educador que observa a partir da premissa da liberdade, da autonomia e da emancipação. No entanto, vejo como fundamento (um tanto perdido) a noção de implicações (presentes e futuras) e as consequências advindas (a responsabilização por ações). A práxis (reflexão e ação), um tipo de conversão do Bom Senso em senso crítico (com apoio em Gramsci[3] também, refutando-se o sectarismo, ultrapassando-se o senso comum: o “vai da valsa”), não pode prescindir desse conjunto de elementos, dessa base conceitual[4]. Aliás, essa é uma das grandes diferenças entre práticas sociais e práxis. E isso, por sua vez, nos reforça (como obrigação) a necessidade do estudo, da leitura, a fim de que a reflexão tenha um prisma de sustentação (racionalidade) filosófica, sociológica, científica, política. Em suma, nesse contexto, a autoeducação se torna obrigatória e, assim, todos/as se transformam e, ao se transformarem, modificam o seu entorno. Essa práxis que parte da liberdade (e que sendo feita na luta pela sobrevivência é, obviamente, política) se materializa na mudança social, política, econômica, cultural, societal.
2. Quais seriam, hoje, as principais formas de “adestramento” presentes na educação pública e privada — e como a dialética propositiva pode ajudar a superá-las?
Em uma frase, entendo por Dialética Propositiva a reflexão e a ação do/a educador/a que visa a metamorfose do senso comum (e do empiriocriticismo) em Bom Senso – tomando-se este por uma equivalência do senso crítico. Sob esse prisma, temos hoje no Brasil a vigência (violência) de uma enorme contradição, uma incongruência, excrescência que desafia toda luta política que já travamos contra os séculos de domínio excludente. Enquanto as instituições privadas, especialmente as escolas particulares de ensino fundamental e médio, mantém e reforçam o ensino de Ciências, filosofia (identificar pressupostos, imperativos e propor hipóteses) e sociologia (identificar e analisar desafios, antagonismos e contradições fundamentais[5]), a rede pública aniquila na prática esses conteúdos – insere “rotatórias de vida” (tipo: “O que rola por aí”) e uma suposta Robótica. As chamadas “elites” mantém filosofia e sociologia (e Ciências) porque ensinam seus filhos e filhas a pensarem e, pensando, a se ajustarem ao comando social. As elites ensinam sua prole a ser classe dominante e, por óbvio, ninguém domina nada se não for pensando adequadamente, racionalmente, em profundidade. O pior adestramento me parece ser esse, uma adesão (plena identificação com o Capitalismo digital[6]: rentismo e capitalismo de dados), pois, nós somos a mercadoria na gôndola de plena oferta. Como é que se oferta Educação financeira para crianças e jovens pobres, negros e oprimidos – na base da economia de um real –, se muitos vão à escola em busca da alimentação que lhes falta em casa[7]? Como é que se insere disciplinas como Robótica em comunidades absolutamente carentes, desprovidas do próprio Estado, marginalizadas, ou nas regiões do interior profundo e no sertão distante? Não faz sentido algum, a não ser uma pela ótica da adesão, subsunção, identificação com a exclusão de milhões de brasileiras e de brasileiros. Por óbvio, seria muito mais adequado termos conteúdos específicos (quer dizer, avalizados por cientistas críticos e não aderentes à comodidade pós-moderna) sobre Educação digital – debatendo, mostrando, os perigos representados pelas redes antissociais: desumanizantes e que conferem a “adultização” e o discurso de ódio – e Educação ambiental; todavia, devotando-se essa à reflexão analítica que vise mudanças profundas e estruturais no país, a começar pela “cultura agro”. De modo mais profundo, seria insurgente, urgentemente necessária, uma Educação para além do capital, após Auschwitz e depois de Gaza[8].
3. O senhor propõe uma Ciência com consCiência social, fundada na participação popular. Que caminhos práticos podem fortalecer a presença dos movimentos sociais e das vozes populares na produção científica e na gestão educacional brasileira?
Em uma pequena frase também, na premissa da resposta diria que a universidade precisa sair do castelo de areia em que se encontra: frágil e traiçoeiro, como a areia movediça. De modo mais amplo, penso no sentido de que a práxis real, humana, é um processo de conhecimento (social), autoconhecimento (autoeducação), reconhecimento (institucional) e, portanto, de afirmação da humanidade que há em cada ser social. Quando se procura a raiz do humano se verifica a capacidade de se fazer política ou, em outras palavras, encontra-se o “fazer-se política”. Essa passagem, metamorfose (desbloqueio) do ser social[9] (homo sociologicus) em “animal político” não apenas nos remete aos resultados políticos imediatos –típicos do “realismo político”, como dominação, domínio, poder, capacidade decisional – como, sobretudo, traz a implicação ou obrigação de vermos o nosso “insumo” primal, primeiro. Qual seja: a raiz, a radicalidade política que há em todos nós, porque nós nos fizemos enquanto Humanidade, precisamente, fazendo política. Não seríamos “insumos da Humanidade” sem esse “fazer-se política”, essa é a nossa história (ontologia). É isso que somos, seres sociais que se transformam em animais políticos (forçosamente) fazendo política e, ao fazê-la, fazendo-nos politicamente. Esse é o eixo da hominização, ao longo do enorme, milenar Processo Civilizatório.
4. O senhor enfatiza a necessidade de “proposição efetiva, não o apaziguamento”. Como essa atitude propositiva pode orientar o trabalho do GEMINIAL em pesquisa, militância e políticas públicas de educação?
Numa leitura geral, propositiva, parto da premissa de que a
Ciência, o pensamento científico (de fato) somente se verifica por meio da
insatisfação, da curiosidade e da criatividade que desembocam na capacidade
cognitiva crítica (antigamente, chamava-se de Massa Crítica). Ao contrário
disso só vemos um “copiar, colar”, a mera repetição, aquele decoreba da mesmice
que cola em discursos pomposos, mas, absolutamente inúteis. Chama-se de
“cultura balofa”, capaz de falar várias línguas – menos a língua do povo.
Costumo dizer com acidez, sarcasmo, que, a pior coisa da universidade (mormente
a pública) é ver “as pessoas correndo para fazer tudo igual e, depois,
competindo entre si para ver quem fez mais igual”. Se não há insatisfação e
curiosidade não há crítica, pois há só conformismo com o óbvio – e, obviamente,
não há Ciência conformista. Se quisesse dizer de outro modo diria que devemos
partir do óbvio (é claro, por suposta racionalidade e para não inventar a roda
ou desafiar a lógica com desatino), porém, essa assertiva é igualmente óbvia. O
grande desafio de toda pessoa que se articula, minimamente, com a instância de
necessidade do Bom Senso é não se contentar com as obviedades, pôr-se o desafio
de ir além, de ver para além da fumaça espessa ou rala da realidade que se nos
apresenta. Se isto é uma condição humana, de crescimento, de aprofundamento,
amadurecimento (Bom Senso), o que mais dizer, esperar da universidade, do/a
cientista, do/a pesquisador/a? Se é uma condição óbvia de todos que superam o
senso comum, a pasmaceira do “copia e cola”, de quem busca sua própria
liberdade e autonomia (da identidade em contato com a emancipação – que só pode
ser social, amplificada), é mais uma vez óbvio que não se faz Ciência de outro
modo. Essa é a nossa obrigação principal, precípua: pensar além do mesmo, além
do “fazer tudo igual e competir para ver quem fez mais igual do que os demais”.
Se não fosse a enorme curiosidade, a impulsividade em solucionar problemas,
dilemas, necessidades elementares, não teríamos sequer inventado a energia
elétrica, quanto mais os antibióticos e as vacinas. Sem a crítica necessária ao
status quo, à pasmaceira do
conhecimento estabelecido como “campo de luta” dos estratos funcionais e das
frações de classe dominante que habitam a universidade pública, ainda
estaríamos enfurnados no fundo da caverna de Platão. Além disso, dois pontos
têm me chamado a atenção. São convergentes em erros conceituais e no senso
comum:
1. Tornou-se lucrativo dizer que: "A extrema direita
politizou as periferias". Se dissesse "colonizou" estaria
correto, pois a soberania legislativa pertence ao crime organizado, às seitas e
ao Necrofascismo[10]. O
que contradiz, obviamente, ao mínimo senso de espaço público. Portanto, não há
política nessa Polis colonizada pelo barbarismo. A Política como esteio do
Princípio do Contraditório requer a liberdade para se construir como emancipação
individual e social - bem longe do jugo e da opressão.
2. Em consonância a isso, diz-se solenemente
("academicamente") que: "Toda educação é política". Esse é
o tipo de senso comum mais comum que podemos encontrar (e, portanto, é muito
difícil de superar). Definitivamente, a educação só é política quando nos
remete à liberdade, autonomia e emancipação. Conceitualmente, a educação
politiza por meio do "fazer-se política" e jamais quando negamos a
Política (o espaço público). Isso implica em práxis (reflexão e ação), no
fazer-se político quando se está estudando e fazendo, atuando politicamente, no
âmago da ação política. Então, será que toda "educação" tem esse fim,
esse objetivo da politização enquanto humanização? Arendt sabia disso, os gregos
nos ensinaram, mas foi, sobretudo, o longo processo de hominização que nos
forjou assim enquanto humanidade. O que reprime, atordoa os sentidos, entorpece
os sentimentos, o que adestra, por óbvio, não educa. Por certo, temos que
saltar fora desse pensamento robótico que se espalhou a partir das agências de
fomento – que identificam a “inovação” com o acréscimo de duas linhas em
algoritmos e que nem dominamos – e dos interesses hegemônicos, predominantes no
atual estágio do Capitalismo digital.
[1] É impossível desgostar e não notar a ironia transformadora em alguns
cordéis: LIMA, João Ferreira de. Proezas
de João Grilo. Fortaleza-CE: Academia Brasileira de Cordel: Ban Gráfica,
2002.
[2] A bricolagem é uma das suas mais notórias demonstrações,
sendo uma encantadora arte da vida, solucionadora de necessidades e propositora
de soluções e de alternativas criativas.
[3] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson
Coutinho). Volume II. Os intelectuais: o
Princípio Educativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
[4] MARTINEZ, Vinício Carrilho. *Educação
e Sociedade*: Sociologia Política da Educação. São
Carlos: Amazon, 2025. Disponível em: https://www.amazon.com.br/dp/B0FXSXHN7R.
[5] Engana-se redondamente quem supõe que as classes dominantes
não estudam e não ensinam para sua prole o que é a luta de classes – inclusive
porque fazem parte de uma classe fundamental do Capitalismo digital, orbitando
cada uma de suas frações. E aqui se afunila o paradoxo, porque governos
progressistas se esquivam da obviedade capitalista, negando-se a ofertar na
prática o direito à educação, notadamente para o povo pobre, negro e oprimido –
e mais ainda se entendermos que não há educação sem liberdade, autonomia,
consciência, responsabilidade (individual e social) e emancipação. Não se pode
negar o “direito ao pensamento” criativo, propositivo, crítico.
[6] https://aterraeredonda.com.br/ensaio-sobre-capitalismo-digital-e-tecnofascismo/. Acesso em 10/11/2025.
[7] CAROLINA Maria de Jesus. Quarto de despejo: diário de uma
favelada. São Paulo: Ática, 2014, p. 43. Qual Educação capitalista poderia
subverter a realidade corrosiva das tantas Carolinas de Jesus ainda mantidas no
Mundo do Trabalho sob condições análogas à escravidão?
[8] MARTINEZ, Vinício Carrilho. *Educação
para além da exceção*: Educação para além do capital; Educação após
Auschwiz, e depois de Gaza; Educação em Direitos Humanos; Educação
Constitucional. 499 p. 2025. Tese (Título de Professor Titular) - Universidade
Federal de São Carlos, São Carlos, 2025.
[9] É preciso sempre ter em mente que há muitos animais sociais
(dotados, inclusive, de algum esforço consciente: senciência), todavia, apenas
nós humanos somos “animais políticos”.
[10] MARTINEZ, Vinício Carrilho. Necrofascismo:
Fascismo Nacional, necropolítica, licantropia política, genocídio político.
Curitiba: Brazil Publishing, 2022.
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