Terça-feira, 28 de outubro de 2025 - 11h52

Tanto fizemos e desfizemos que, afinal de
contas, e ainda estamos no início do século XXI, conseguimos produzir uma
inteligência desumana, absolutamente desumana; pois, leva docilmente à morte.
Temos à nossa inteira disposição uma tecnologia que enreda a morte com rotos
sinais de vida (e não estamos falando da energia nuclear).
No
século passado, o boneco mortífero era só uma ficção, hoje há robôs criados
para esse fim. Tanto fizemos que demos “vida” à engenhoca destinada ao nosso
fim – a tecnologia não é mais um meio, mero suporte ou extensão das habilidades
humanas; já faz algum tempo que o martelo não é um constructo que apenas
substitui a mão humana. Definitivamente, efetivamente, o martelo se voltou
contra nós[1].
Docilmente, nos entregamos à tecnologia que,
programada para tal, nos elimina como resíduos descartáveis[2].
Portanto, nossa entrega dócil não poderia gerar uma ironia maior do que essa:
nossa programação social, societal, nos impôs a mesma obsolescência do capital:
quando mais se prevê o fim do que se dá atenção aos meios e ao processo como um
todo. As mercadorias têm data de validade – e os humanos também.
Passamos da fase sinalizada como “servidão
voluntária”, do chamado Capitalismo de dados – lastreado nas redes sociais que
monetizam o engajamento. Passamos dessa fase porque temos a imposição de um
capital capaz de sintetizar (projetar) a vida para longe de nossa existência –
agudizando, por certo, a pior crise ontológica possível: se já não somos
programados para viver, então, não haverá dúvidas de que podemos sucumbir ao
capital, e morrer tranquilamente, docilmente[3].
A obsolescência do capital nos apanhou em cheio
na condição humana que se projetava inconteste, antigamente irrefutável. Agora,
somos programados para viver enquanto somos capazes de consumir e o fim é
planejado porque somente uma elite de nós tem o “direito de consumir”. Para o
restante, impõem-se o “dever de se autoconsumir” – assim, não é difícil
visualizar que a regra se fez exceção e que a exceção se fez regra: no
capitalismo de autoconsumo e planejado desde já para ser obsoleto, a regra
prevalecente é a do descarte, da exclusão e da eliminação[4].
A
outra perna dessa ironia avassaladora está no fato de que a Inteligência
Artificial (IA) ainda é um produto humano, o algoritmo ainda sintetiza o
substrato humano, recolhendo tudo que produzimos e postamos na Internet: a IA,
ainda, tem apenas esse efeito sintetizador – ela não produz nada, ainda.
Somos nós, com nosso engenho e trabalho que
criamos e postamos, gentilmente (a exemplo desse artigo) e a IA tem a função de
fazer uma síntese, um resumo, do nosso próprio trabalho e esforço intelectual –
e olha só como é “inteligente”: sintetiza o que fizemos e devolve para nós, mas
como se fosse produção dela. Aqui está um dos engenhos desse “encantamento”: há
uma apropriação cultural, científica, artística que chega a um limite – a nossa
própria incapacidade de identificação com a nossa produção cognitiva,
intelectual.
Em todo caso, em que pese essa brutal
apropriação da nossa capacidade, a inteligência produtiva ainda é nossa, mas,
crescentemente, estamos delegando (para fora de nós) essa capacidade – o
exemplo aqui vai por conta da máquina que já planeja outras máquinas.
Pois bem, antigamente, isso era chamado de
fetiche da mercadoria[5], efeito
em as pessoas "sentem" – na ausência de formação crítica – que
"a mercadoria tem vida própria".
As pessoas "pensam" que o produto foi
andando até à gôndola do mercado. Jamais ou quase nunca veem a força de
trabalho de quem pôs ali, abasteceu.
A classe trabalhadora fica invisível, ninguém
quer saber de fato quem produziu aquela mercadoria, aquele produto, e, também
por isso, a luta de classes desaparece do horizonte cognitivo das pessoas em
geral: ninguém vê, porque não quer ver,
sob o efeito ludibriante, quem produziu, trabalhou.
Esse efeito se completa com a
"alienação" (tirar de si a consciência). A alienação tem inúmeros
fatores, do fatos que a provoca e os seus resultados, todavia, um deles – e que
se liga à IA – decorre da maquinaria: o motor à combustão simulando, parecendo
ter "vida própria", com movimentos contínuos, provocou (provoca) um
"efeito encantador", um espanto: "meu Deus, como pode fazer
isso? Parece um humano! – ele tem vida própria!![6]".
Isso diziam os trabalhadores da Segunda Revolução
industrial e, guardadas as proporções (hoje sob efeitos muito mais aguçados),
dizem as pessoas em relação à tecnologia (em geral) e mais ainda quando
"mergulham" na Inteligência Artificial.
Tivemos etapas “evolutivas” nesse processo de
encantamento (e embotamento[7]),
como a produção em escala, o fordismo, a linha de produção, o Taylorismo, a
automatização, o Toyotismo, a robotização – seja ela maquínica, seja ela
promovida por Bots (no espectro digital).
O fato é que viemos atribuindo características da
condição humana à IA, e, assim, os efeitos (metafísicos) do passado longínquo
do capital invertido (maquinaria) ganham proporções épicas, como o direito à
vida e à morte.
Esse efeito espetacular da tecnologia atual e da
IA, em particular, elevaram a um nível devastador, sem precedentes na história
do capitalismo, essa "transferência de humanidade para as
máquinas".
É como se víssemos um "encantamento"
de forma total (o indivíduo está literalmente entregue), capaz de associar
(ressignificar) as pessoas a partir do fetichismo e da brutal alienação.
Hoje transferimos trabalhos simples à IA, todos
nós, porém, alguns já transferiram os atos mais complexos: encantados pela
"inteligência" de outrem, de outra coisa, simplesmente deixaram de
viver.
Em resumo: uma das principais diferenças entre a
técnica (essência da hominização) e a tecnologia está na capacidade
incontrolável (hegemônica) do maquinismo atual provocar "as piores crises
ontológicas" (não saber se você existe) da história da humanidade.
A dúvida hamletiana, "ser ou não ser", já não faz sentido[8].
A resposta foi dada pelo capital hegemônico que
produz e alimenta a IA, no cotidiano de cada um/a de nós.
É o mesmo que dizer: o modus operandi (altamente
tecnológico) do capitalismo atual já decretou que a vida humana não é mais
necessária.
Afinal, para o algoritmo, somos fúteis, inúteis,
relegados à primariedade dos mais ineptos produtores de dados brutos – os dados
brutos que são tão embrutecidos quanto nós nos tornamos.
E a ironia catatônica se encerra com a lembrança
de que, nessa fase do capital dissolutivo, os rendimentos, os dividendos,
também podem ser “sintéticos[9]”.
Este é o desfecho para a ironia de vida e morte: o capital sintético (do
futuro) assinala, outra vez, que a vida humana é desprezível.
É desse modo que a vida é sintetizada pelo
capital especulativo, sintetizador de lucros futuros que dependem da morte (e
não estamos tratando da indústria bélica – na verdade, o capitalismo é bélico
e, portanto, sua tecnologia e indústria não podem seguir um mote diferente).
Todas as respostas fornecidas pela IA são simplificadas, depuradas de autoria, de humanidade, e o que ela nunca nos diz é simples: trata-se de uma impositiva condição especulativa do capital especulativo e improdutivo. Em outras palavras, trata-se de ganhar no futuro o que desfez no presente. Afinal, a vida é sintética, o passado é presente, enquanto o futuro é uma porta fechada.
[1] SHELLEY, Mary. Frankenstein – uma história de Mary Shelley contada por
Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
[2] Mãe quer justiça após
morte de jovem que namorava IA - 27/10/2025 - Cotidiano - Folha https://share.google/s34X4SOc3GTLOWevx.
Acesso em 28/10/2025.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Vigilância Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
[4] MARTINEZ, Vinício Carrilho. *Educação para além da exceção*: Educação
para além do capital; Educação após Auschwiz, e depois de Gaza; Educação em
Direitos Humanos; Educação Constitucional. 499 p. 2025. Tese (Título de
Professor Titular) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2025.
[5] MARX, Karl. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989.
[6] GOGOL, Nicolau. O Capote. Rio de Janeiro: Alhambra, 1986.
[7] Esse é o espanto de Kafka ao se ver metamorfoseado em
barata, em algo desprezível aos olhos da vida social produtiva e sempre ávida à
manipulação, estagnação e despersonalização dos produtores: “Por que Gregor
estava condenado a servir numa firma em que à mínima omissão se levantava logo
a máxima suspeita? Será que todos os funcionários eram sem exceção vagabundos?
[...] Ele não está bem, acredite em mim, senhor gerente. Senão como Gregor
perderia um trem? Esse moço não tem outra coisa na cabeça a não ser a firma
[...] Senhor gerente, não vá embora sem me dizer uma palavra capaz de mostrar
que o senhor me dá pelo menos uma pequena parcela de razão” (KAFKA, Franz. A
metamorfose. 18ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 16-26). Vemos
aí o pensamento maquínico que já rondava a Alemanha às vésperas da ascensão do
Partido Nacional-Socialista, na Alemanha. A fixação na produtividade da cultura
superior.
[8] SHAKESPEARE, W. Hamlet, príncipe da Dinamarca. Tradução de Ana Amélia
de Queiroz Carneiro Mendonça. In: BLOOM, H. Hamlet: poema ilimitado. Tradução
de José Roberto O'Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p.140-319.
[9] “Dividendo sintético é uma estratégia financeira que gera
renda através da venda de opções de compra (call options),
conhecida como venda coberta, em vez de receber lucros diretamente das
empresas. O investidor ganha o prêmio pago pelo comprador da opção, criando um
fluxo de renda semelhante a dividendos, mas de forma artificial. Essa técnica é
utilizada para obter ganhos adicionais, especialmente quando o mercado está
estável ou em baixa, mas exige conhecimento sobre opções e tem o risco de que a
ação seja vendida por um preço menor que o valor de mercado caso o comprador da
opção a exerça”.
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