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Uma crônica de Natal: E se o menino Jesus escolhesse nascer brasileiro em 2009?



E se o menino Jesus resolvesse nascer novamente entre nós, para sentir na própria pele os efeitos de seus sagrados ensinamentos? Se escolhesse nascer de uma família humilde, como aquela de Nazaré, que hoje estivesse seguindo, junto ao seu povo, numa longa caminhada? Neste caso, nos dias atuais, Ele escolheria nascer Guarani-Kaiowá!

Nasceria como parte de um povo a caminho, um povo em busca de justiça e de paz. Ele faria parte de uma coletividade que luta para viver, não numa “terra prometida”, e sim numa terra tradicional, lugar de morada dos espíritos ancestrais, onde se sepultaram os corpos de intermináveis gerações. Uma coletividade que, em seu modo de pensar, ironicamente mantém viva a crença na Terra sem Mal.

Ele seria, enfim, parte de um povo que entende seu território como espaço amplo de relações sociais e de convivência com diferentes culturas, mas que se vê, hoje, expulso desse mesmo território pela intolerância de quem acredita poder decretar qualquer espaço como propriedade privada, através da violência, da força bruta e da covardia.

Se o menino Jesus viesse, neste Natal, acalentar-se nos braços afetuosos de uma mulher Guarani, ele seria acolhido como alguém muito desejado. Antes mesmo que seu corpo se formasse no ventre materno Ele seria anunciado como boa notícia, nos sonhos de seus pais, tal como ocorre quando se gera uma nova vida entre os Guarani. E ele nasceria cercado por pessoas que, no afeto cotidiano, estabeleceriam os vínculos familiares e o parentesco com esse novo ser, esse verbo feito carne, com essa palavra-alma!

Seu nome seria, possivelmente, anunciado por um Pajé, um ancião que, entre os Guarani, conhece os segredos da vida e da morte e sabe pronunciar as “belas palavras”, aquelas que chamaríamos de “língua dos anjos” na tradição judaico-cristã. Seu nome seria um sinal do que, neste mundo, ele poderia realizar, das virtudes e dons que carregaria consigo e que, no viver, deveria alimentar e fazer crescer, tal com as viçosas roças de milho.

Se o menino Jesus decidisse ficar entre nós para ver se sua história seria diferente, em pleno século XXI, talvez ele encontrasse desafios bem semelhantes daqueles que enfrentou para semear sua palavra de amor, há mais de dois mil anos. Viveria em um acampamento à beira da estrada, como centenas de Guarani-Kaiowá que aguardam ainda a regularização de suas terras. Cresceria alimentado por tradições que preparam a pessoa para viver numa coletividade e não na individualidade. Seria uma criança entre as muitas que crescem cercadas de cuidados e de atenção, mesmo quando o alimento é escasso. Mas, com dois anos de vida, talvez Ele morresse prematuramente, vítima da falta de assistência e da negligência do Poder Público, tal como a pequena Tatirrara, em Kurussu Ambá, que morreu no dia 18 de dezembro por falta de assistência. Apesar dos contínuos apelos da comunidade para obter medicamentos, a Fundação Nacional de Saúde negou-se a prestar assistência porque a terra está “em litígio”.

Se Jesus sobrevivesse, aos 15 anos talvez decidisse participar, junto com sua comunidade, de uma retomada de terra tradicional – o tekohá, a “terra prometida” para viver plenamente o Nandê Recó, “o jeito de ser Guarani”. Neste caso, talvez Ele fosse mais um jovem assassinado brutalmente, tal como Osmair Fernandes, encontrado morto em uma escola, com indícios de espancamento e de tortura.

Vamos imaginar que, com sorte, o jovem Jesus escapasse a essas violências e tivesse a chance de estudar. Afinal, Ele nasceu para ser Mestre! Quem sabe, hoje escolhesse ser professor! Conhecendo um pouquinho da história de Jesus, vivida há mais de dois mil anos, podemos imaginar que ele também não se calaria diante das injustiças e, assim, utilizaria o “dom da palavra” para ensinar, para abrir os olhos, para aconselhar, para reivindicar que a justiça fosse a medida de toda a nossa vida. Neste caso, talvez seu destino fosse o mesmo que o de Genivaldo ou Rolindo Verá, os dois professores Guarani-Kaiowá seqüestrados e arrastados pelos cabelos por homens encapuzados, de dentro de sua comunidade.

E se não fosse, ainda, a hora de entregar o corpo em sacrifício, o Filho de Deus seguiria um pouco mais, junto a seu povo, cultivando a esperança cotidiana, tecendo a vida como quem trama fibras de taquara, que se transformam em cestos para transportar os frutos da vida e do trabalho. Ele viveria transitando entre um lugar e outro, em acampamentos provisórios e, junto com os seus, sofreria com as precárias condições para a sobrevivência, tal como qualquer povo que vive em exílio, impedido de ocupar definitivamente o seu próprio lugar.

Seria, como há dois mil anos, um homem de paz, desses que buscam construir a harmonia, que buscam falar a sua verdade calmamente, manifestando, pela argumentação, as razões de sua esperança, de suas lutas, de seus anseios. Ele aprenderia esse jeito de ser com os próprios Guarani, quando fosse, por exemplo, fazer uma reivindicação junto a qualquer órgão público ou quando fosse conversar com qualquer visitante, em sua aldeia.

Para os Guarani, essa forma de lutar só é rompida quando a espera se estende em demasia, e não há mais como resistir, se não retomando uma porção de terra. Nessas ocasiões, eles seguem em grupo, com suas famílias, seus animais de estimação, e os poucos objetos que possuem. Armam seus acampamentos e ali permanecem, pacificamente, à espera de providências legais. Quase sempre são recebidos com violências, são ameaçados com rajadas de tiros, são agredidos, espancados, impedidos de obter água, alimentos, medicamentos. Por isso, nascendo novamente hoje, penso que Jesus estaria entre eles e, possivelmente, se tornaria um Pajé, um líder religioso dedicado a curar doenças, a dizer as “belas palavras”, a aconselhar aqueles que vivem à sua volta.

Envelhecendo entre os Guarani-Kaiowá, Ele seria respeitado por adquirir a sabedoria dos anos – a idade é, para este povo, “o tempo que age sobre a pessoa” e que torna a alma mais aproximada da divindade. Como Pajé, talvez liderasse uma retomada, quando a vida num certo acampamento se mostrasse impossível. Ele, então, conduziria um grupo de famílias para uma terra tradicional, onde se pudessem ouvir melhor os conselhos dos espíritos ancestrais. E, nesse lugar, talvez seu grupo fosse vítima da ação criminosa de alguns jagunços de fazendeiros, armados e encapuzados. No embate, poderia Ele ser assassinado a tiros, como foi vítima a anciã e rezadora Xuretê Lopes, numa expulsão comandada por jagunços, em 2007.

Se Jesus Cristo decidisse nascer novamente entre nós, e se fizesse gente entre os Guarani-Kaiowá, correria o risco de ser, novamente, humilhado, torturado, assassinado, com a mesma crueldade daqueles tempos em que se crucificavam os homens que desafiavam as leis, e também aqueles que desafiavam o poder político e econômico para fazer cumprir as leis.

Por isso, neste Natal, é melhor pedirmos a Jesus que permaneça lá mesmo, à direita de Deus Pai, pelo menos por enquanto, pois a maioria dos homens e mulheres que vivem no Brasil contemporâneo ainda não entendeu o significado de suas lições de amor e de solidariedade. Mas acreditamos que um dia todos nós formaremos uma multidão que já não grita “soltem Barrabás”, mas que brada “Demarcação já”! Justiça para os Povos Indígenas!

Porto Alegre (RS), 21 de dezembro de 2009.

Iara Tatiana Bonin

Doutora em Educação pela UFRGS e Professora do PPG da Universidade Luterana do Brasil

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