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Para além da crônica política


Para além da crônica política - Gente de Opinião
A crônica diária do governo Bolsonaro é uma novela recheada de episódios midiáticos. Contudo, para além desses fenômenos, deve-se atentar para o impacto que ideologização inoportuna, experimentalismo político e belicismo comunicacional produzem em elementos mais estruturais da sociedade. Há mudanças em curso importantes de se reconhecer, e discutimos algumas aqui.

O primeiro fenômeno refere-se à crise da democracia representativa. Desde os anos 1970 a democracia vem experimentando, nos países centrais e naqueles de democracia mais tardia como o Brasil, quedas nas taxas de participação eleitoral e filiação partidária, além de erosão da confiança dos cidadãos nos políticos e nas instituições. 

Ao contrário da crise democrática do entre guerras (1919-1939), que levou a movimentos totalitários em vários países, atualmente a crise se expressa na crítica à prática da democracia, contudo persiste um razoável apoio aos seus princípios. Como afirmam Dalton e Welzel[1], os cidadãos deixaram de ser passivos e leais ao sistema e se tornaram assertivos e críticos, sendo voz, participação e expressão de valores em ascensão.

Como é da natureza dos fenômenos estruturais, tal degradação da democracia representativa caminha lentamente, mas aqui e ali um fenômeno especialmente ruim produz um pico de corrosão na confiança na política. A corrupção do mensalão e do petrolão, a crise econômica e social, o impeachment de Dilma e as prisões de políticos alimentam a erosão.

No governo atual, por sua vez, o estilo sectário de liderança, a retórica de agressão, o foco em questões secundárias e os ataques à própria política como diálogo levam água a esse moinho funesto. Tal peça teatral corrosiva vem acompanhada de desemprego sem trégua e serviços públicos sem horizonte de melhora. A campanha eleitoral vitoriosa baseou-se no ataque à política, e agora o grupo no poder mantém a mesma estratégia. Assim, se o governo fracassar, gerará frustração e mais descrédito para a política devido às promessas não cumpridas; se tiver sucesso, seguindo na estratégia de atacar a política, também enfraquecerá a democracia.

2020 deve nos apresentar campanhas eleitorais ainda mais personalistas e personalizadas. Caso não seja feita a sempre improvável reforma das regras eleitorais e partidárias, é de se esperar que o eleitor fragmente mais ainda o quadro político ao despejar suas frustrações num sistema sem regras saudáveis de ordenamento. Deveremos assistir a novos picos de votos brancos, nulos e abstenções, que são as manifestações formais de descrédito no sistema político. O cenário não é auspicioso.

O segundo elemento refere-se à galvanização de todo um “ecossistema” de valores e atores em torno da educação. A excentricidade das posições do governo e seu foco em questões secundárias acendeu o alerta vermelho em todos aqueles que se preocupam em construir uma melhor educação no país.

Um grupo extenso de pesquisadores, profissionais da área, gestores de esferas estadual e municipal, políticos atuantes na educação e movimentos políticos têm (re)apresentado problemas, diagnósticos e alternativas; da mesma forma, buscam articular fóruns de discussão e proposição. Não se trata da questão pontual da defesa da universidade pública (que certamente tem pontos a melhorar e também boas experiências e iniciativas para apresentar), mas de realmente pensar o sistema educacional como um todo, em perspectiva internacional, e buscar caminhos para o Brasil. Formação de professores inicial e continuada próximas à vida escolar, melhores remuneração e condições de trabalho, carreiras estruturadas recompensando experiência e mérito, apoio à transformação da base curricular comum em currículos, foco na educação infantil, avanços na reforma do ensino médio, manutenção e aprimoramento do Fundeb são algumas questões discutidas e defendidas.

Óbvio que todo esse “ecossistema” sempre esteve lá, mas agora foi chamado a agir em busca da sobrevivência de ideias e projetos que adquiriram bastante consenso na área e são ou ignorados ou atacados pelos movimentos ideológicos inconsequentes promovidos pelo Ministério da Educação. Não por acaso, a própria centralidade do MEC no processo de gestão e formulação das políticas de educação no Brasil parece ter-se fragilizado, devido à busca natural dos atores por outros fóruns onde sejam possíveis o diálogo e a construção conjunta. Quiçá tal movimento na educação, passada esta fase de defesa e sobrevivência, possa frutificar no futuro incentivado pela coesão e atividade do presente.

Um terceiro elemento refere-se ao maior protagonismo do Congresso na definição de políticas públicas e na feição do governo, o que implica o seu reposicionamento no sistema de poder. Mais protagonismo significa responsabilidade, uma transformação que desafia e se apresenta envolta em incerteza.

Sem dúvida o Legislativo nacional padece de vários problemas, que vão da representatividade frágil aos escândalos de corrupção presentes em sua história. Contudo, um ponto central é o próprio papel governativo do Congresso no quadro mais amplo das instituições políticas. De Fernando Henrique até o impeachment de Dilma, o Legislativo comportou-se como polo passivo na definição das políticas públicas. A fragmentação partidária, por exemplo, pôde chegar ao ponto absurdo de hoje devido ao pouco protagonismo dos partidos e do próprio parlamento. Ideias como o parlamentarismo, meritórias em princípio, geram entre nós dúvida sobre a capacidade do Legislativo diante da missão, pois que nunca assumiu peso substancial dos bônus e ônus do governo, sempre escudado atrás do presidente da República.

Agora, diante da recusa do governo Bolsonaro em interagir com o Congresso dentro do arranjo do presidencialismo de coalizão, e também devido à estratégia até o momento suicida de praticamente abandono de reformas necessárias à própria sorte, têm surgido iniciativas dentro do Congresso em que o protagonismo é a tônica principal. Tais iniciativas serão desafiadas pela capacidade de produção técnica, que remete a um desafio administrativo. 

O Congresso hoje já possui boas estruturas de assessoramento técnico nas consultorias legislativa e de orçamento, nas assessorias de partidos, gabinetes e comissões, mas precisará avançar mais. Há também um desafio de comunicação com a sociedade, pois resultados práticos cairão na conta dos parlamentares, para o bem e para o mal, com impactos na qualidade da representação. Por fim, e mais importante, há também um especial e central desafio político de articulação. 

Ele porá à prova os arranjos partidários existentes e as instâncias de coordenação como Colégio de Líderes e comissões temáticas, além do concerto Câmara dos Deputados-Senado Federal. Sem a presença e a batuta do presidente da República para conformar maiorias dentro do Legislativo e conduzir pautas, os arranjos deverão basear-se em novas práticas e novas regras. Como fazer isso ainda é incerto, mas os presidentes das Casas parecem ter ganho ainda mais relevância.

De fato, o movimento atual já vem na esteira de decisões sobre Orçamento Impositivo e limitação ao poder de edição de medidas provisórias pelo presidente da República. Contudo, hoje atinge-se novo patamar, pois as iniciativas não se restringem a apenas limitar o presidente ­– algo da essência do presidencialismo de freios e contrapesos –, mas sim pretendem substituí-lo em boa medida.

Algumas possibilidades positivas seriam comissões que realmente definam políticas públicas, orçamento impositivo, cobrança de parlamentares por resultados palpáveis, melhoria da relação eleitor-eleito, mais capacidade e responsabilidade do parlamento. O novo modelo pode implicar, no espectro negativo, não obstante, em mais disfunção, falta de articulação e de respostas à sociedade; em suma, menos legitimidade e mais desgoverno.

Ainda é cedo para saber que rumos tais iniciativas tomarão, mas se a política é impulsionada pelos constrangimentos do mundo real, desde há muito que o Legislativo brasileiro não se vê no contexto de desafios e oportunidades em que agora se posiciona. Talvez com outro tipo de liderança voltemos à situação anterior, talvez um novo quadro se consolide. Martelando um clichê adequado à situação, crise e oportunidade são faces da mesma moeda.

A sociedade brasileira está experimentando novidades num contexto de desgaste da democracia e da política. As bases da coesão social sofrem sem ter expectativa próxima de melhora. Alguns movimentos como o “ecossistema” da educação mobilizam-se e tentam defender conquistas civilizatórias, e assim podem frutificar, esperamos, também no futuro. Já o Congresso sobe um degrau em termos de enfrentamento da realidade política; a perdurar o padrão de relações Executivo-Legislativo de hoje ele terá de inventar para si um novo local dentro do governo e do poder nacional.

No mundo social há ações intencionais e resultados não deliberados, consequências de primeira, segunda, terceira ordens; há movimentos ostensivos e outros que passam despercebidos. Em geral, coisas importantes escondem-se para além do noticiário acelerado do dia a dia, arredias a simplificações, generalizações e preconceitos. 

Afortunadamente temos conhecimento acumulado pelas Ciências Sociais e Humanas para atentarmos a questões estruturais e buscar compreender o que virá com razoável confiança.


*Professor do Mestrado Profissional em Poder Legislativo. Economista e doutor em Ciência Política.   

[1] DALTON, Russel; WELZEL, Christian. 2014. “Political Culture and Value Change.” in DALTON, Russel, WELZEL, Christian. The Civic Culture Transformed: from allegiant to assertive citizens. Cambridge University Press.

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