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Os quilombolas e o dia da consciência negra



A Constituição Federal, no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, assegura aos remanescentes das comunidades dos quilombos a propriedade definitiva das terras ocupadas, cabendo ao Estado a emissão dos títulos. O norteamento legal dado pela Constituição foi detalhado com o Decreto 4.887, de 2003, a partir do qual o Incra ficou incumbido de realizar os procedimentos administrativos necessários à titulação dessas áreas. 

Essa atribuição significou a possibilidade de se abrir processos de regularização de territórios quilombolas nas Superintendências Regionais do Incra. Atualmente, existem cerca de 800 processos em praticamente todas as superintendências. O passo seguinte é a realização por uma equipe multidisciplinar de relatórios técnicos com a finalidade de identificar e delimitar a área reivindicada. Já foram publicados 75 Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID), o que significa a identificação de 582.440 hectares, em benefício de 9.873 famílias.  O resultado é que comunidades de 97 áreas já possuem o título da terra, coletivo, indivisível e inegociável, expedido pelo Incra ou por órgãos estaduais de terra conveniados.

Até o início dessa política do governo Lula, o Estado simplesmente ainda não havia chegado para as comunidades quilombolas. Por muitas décadas, estas famílias ficaram totalmente alijadas do desenvolvimento. Não se planejava política pública para essas pessoas. É como se elas não existissem ou não tivessem os mesmos direitos dos outros cidadãos brasileiros. E, apesar das adversidades sem fim, essa gente foi sobrevivendo sem água encanada, sem saneamento, sem luz, sem estrada, sem apoio para produzir. O Brasil desperdiçava a energia de tantos irmãos, fortes, - tão fortes que se mantiveram vivos, em harmonia com a natureza, e zelosos de seu patrimônio imaterial, já que material não tinham.

Quando o Estado os reconhece, é a reparação de uma dívida histórica, é dar aos quilombolas cidadania, um direito de cada brasileiro. O título coletivo da terra carrega a possibilidade de levar as políticas públicas básicas, como as de infra-estrutura. É ainda permitir que eles possam acessar instrumentos de crédito, a necessária via para inseri-los no mercado.  O progresso social e econômico nas áreas que já foram tituladas e começaram a receber as políticas públicas comprovam que o Brasil todo ganha com isso.

Mas às vezes existem conflitos, que precisam ser administrados e resolvidos.  Uma área quilombola emblemática como a de Alcântara, no Maranhão, reconhecida no dia 04 de novembro de 2008 pelo Incra, é um bom exemplo de solução de consenso – mesmo quando é larga a distância entre legítimos interesses.  Havia uma pendência entre os quilombolas e o CLA – Centro de Lançamentos de Alcântara. Os quilombolas, representados pelos movimentos sociais e com apoio do Ministério Público, se opunham à ocupação pela Agência Espacial Brasileira de quase toda a área em que viviam suas 106 comunidades, cerca de 3.500 famílias. Os cientistas e militares haviam encontrado ali o local ideal – do ponto de vista técnico – para que o Brasil não se atrase na disputa tecnológica no espaço.

Foram dois anos de argumentações importantes, de lado a lado. O Incra fez o que determina a Lei: elaborou um minucioso RTID – Relatório Técnico de identificação e Delimitação. Com base nesse relatório, as partes chegaram a um acordo em que todos saem ganhando. Os quilombolas serão titulados em 78.100 hectares, uma área considerável. E o projeto espacial terá direito a 8.710 hectares para a base de lançamentos, e mais 590 hectares para as obras de infra-estrutura, incluindo a moradia dos técnicos do CLA.

Além disso, os detentores de títulos verdadeiros de propriedade na área total de 87.400 hectares serão indenizados em dinheiro por terras e benfeitorias. E todas as famílias remanescentes de quilombos, então tituladas, vão se somar ao esforço do CLA para tornar Alcântara um município desenvolvido. Vão ajudar no progresso do Maranhão e vitaminar ainda mais a Agricultura Familiar, que produz 70 por cento dos produtos que alimentam os brasileiros. Para o Incra, é a certeza de que o reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombos é o bom caminho escolhido pelo Brasil.
 
Rolf Hackbart, 50, economista, é presidente do Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

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