Terça-feira, 19 de abril de 2011 - 11h29
João Baptista Herkenhoff
O encontro do Direito com a Poesia nem sempre é fácil, embora o Direito e a Poesia sejam vizinhos, embora a Poesia engrandeça o Direito, como tentaremos provar neste texto. Frequentemente ao Direito pede-se ordem. A Poesia alimenta-se da transgressão. Em muitos casos, entretanto, só se realiza o Direito pelas portas da transgressão. Que são os movimentos de desobediência civil senão a transgressão coletiva das leis? Foi essa a estratégia de que se utilizaram Nelson Mandela e Martin Luther King, na luta contra a segregação racial (na África do Sul e nos Estados Unidos). Que é, no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) senão a busca do direito à terra, ao trabalho, à sobrevivência, rompendo um suposto pacto social. Pacto social apenas suposto, não um pacto efetivo porque representado por leis protetoras de um direito ou quase absoluto de propriedade, interpretadas de maneira positivista pelos tribunais. Mesmo quando a propriedade não cumpre sua finalidade social, nas balizas desse pacto, tolera-se com indiferença o desvio.
Viva a liberdade dos poetas, no seu cântico:
“Nunca haverá fronteira na vida de um poeta. Sua bandeira é de luz, sua justiça é correta. Se errarem ele protesta.” (Silas Correia Leite).
Mas mesmo o Poeta, cuja missão deve ser o anúncio dos mais altos ideais, pode esquecer-se da vida que o rodeia. Quando há esse esquecimento, quando a Poesia não cumpre o seu papel, merece reprovação. E como é belo quando quem reprova o poeta é o Poeta, como nestes versos de um dos maiores a poetar em Língua Portuguesa:
“Ao ver uma rosa branca o poeta disse: Que linda! Cantarei sua beleza como ninguém nunca ainda! E a rosa: - Calhorda que és! Pára de olhar para cima! Mira o que tens a teus pés! E o poeta vê uma criança suja, esquálida, andrajosa comendo um torrão da terra que dera existência à rosa.” (Vinicius de Moraes).
Charles Chaplin, com sua profunda sensibilidade de Artista, puxa a orelha do jurista que se divorcia das angústias humanas: "Juízes, não sois máquinas! Homens é o que sois!"
Poesia é substantito feminino. Direito é substantivo masculino.
Há uma preponderante presença do masculino no Direito, a começar pela prevalência de homens nas funções judiciais. Só recentemente mulheres ascenderam aos tribunais, e mesmo assim, em total desproporção à presença de homens nessas casas.
Como escreveu Marita Beatriz Konzen,
“não há que se falar em estado democrático, enquanto não eliminarmos as gritantes diferenças sociais, dentre as quais, a desigualdade de sexos.”
A sensibilidade não é virtude exclusivamente das mulheres. Também os homens podem ser sensíveis, enquanto nem sempre as mulheres são portadoras de sensibilidade.
Mas, em termos globais, por critérios de totalidade, acredito que a Justiça seria mais sensível se abrigasse, nos seus quadros, uma presença mais significativa de juízas.
Utopia, Paz, Participação, Igualdade, Anistia são palavras femininas que apontam para o ideal de uma sociedade fraterna.
Racismo, preconceito, imperialismo, nepotismo, arbítrio são palavras masculinas que direcionam a sociedade para a exclusão e a injustiça.
O conselho de Eduardo Couture, dirigido aos juristas, deveria ser estampado nos fóruns: “Teu dever é lutar pelo Direito. Mas no dia em que encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça".
O conflito entre lei (com letra minúscula mesmo) e Justiça (com letra maiúscula sempre) é uma constante no espírito do Juiz.
Creio que deva prevalecer a Justiça.
Trabalhar com a pauta da lei para encontrar a Justiça é uma tarefa difícil.
Porém, por mais difícil que seja a tarefa, essa busca é obrigatória.
Reprovo, com veemência, a recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pretendendo que o mérito ou demérito dos magistrados seja aquilatado pelo ajustamento de suas sentenças à jurisprudência dos tribunais superiores.
Quem renova o Direito é o juiz de primeiro grau, rente à vida.
Só o juiz de primeiro grau pode auscultar o ser humano, da mesma forma que só o médico pode auscultar o coração e o pulmão do paciente.
Os tribunais, como disse Eliézer Rosa, são sempre tribunais de ausentes porque nunca têm diante de si pessoas, mas apenas autos, papéis, argumentos.
Só a contemplação pessoal dos rostos e dos dramas humanos, que transparecem nesses rostos, pode permitir ao juiz humanizar a lei, ou seja, fazer com que a lei suba às esferas da Poesia.
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