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Não basta só ser séria? Tem de parecer séria?


Por Marli Gonçalves

É uma ditadura do comportamento. Uma verdadeira armadura medieval. Tem de fazer isso e isso, pensar aquilo, usar tal coisa dessa maneira, assim, assado. Não pode tal; nem passar perto daquilo. A impressão é que em breve novamente florescerão os cursos de boas maneiras para moças, e aquelas escolas de donzelas que antes de sorrir levam as mãos aos lábios. Nada de brejeirices.

O resultado é que pelas ruas e telas vemos as mulheres que têm muito o que dizer, mas para ser ouvidas parece que precisam ficar e se mostrar sisudas, tipo braços cruzados, lábios duros "sem mostrar os dentes", roupas clássicas em tons bem neutros. A cara não pode ter muita expressão, a não ser a da seriedade auto-imposta, e um certo mau humor do tipo "fique distante". Uma coisa Dilma. Preocupa-me essa profusão de Dilmas, neste sentido, que estão aparecendo.

O outro resultado é a legião de iguais e mais iguais que vemos por aí. Mais que "Maria vai com as outras", formas de aceitação e submissão. Canso de ver matérias de revistas e sites renovando mês após mês, igual menstruação, ensinamentos, "dicas" (como chamam para buscar torná-las mais palatáveis) de como se dar bem, como melhorar rendimentos, como crescer na firma, como-isso-como-aquilo. Sabe como é, não? Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Parece que estão conseguindo convencer o povo de que isso tudo é bom.

São listas e listas que chegam ao cúmulo de gastar espaço para perguntar a homens o que acham da cor de esmalte das unhas das mulheres... das unhas dos pés! Homens são vítimas também, bem sei, mas eles se importam muito menos com críticas alheias às suas vontades, e a grande maioria vive bem, mais livre de fantasmas. Homens mais velhos ganham charme com seus cabelos prateados, grisalhos, e em geral algum dinheiro a mais no bolso. Dependendo da carteira podem tudo - até ser jecas. Também são alvo dos manuais de comportamento, mas uma certa rebeldia pode até vir a contar pontos.

Já às mulheres, por sua vez, depois de tantas batalhas duras que tivemos pelo reconhecimento de nossas especificidades, direitos, e lugar ao Sol, estão sobrando virar massa de manobra. Inclusive de outras mulheres interessadas em vender suas receitas prontas de bolo, como se todas fossem uma massa pronta a por no forno, subir com o fermento e desenformar, servindo suas fatias à sociedade.

Voltam aos primórdios da comportada Pompéia, sofrendo com o marido imperador César, em seu original: "Não basta que a mulher de César seja honrada; é preciso que sequer seja suspeita".

Querem coisa mais dominadora do que isso?

Por fatos assim nossas revolucionárias hoje são bem outras. É Lady Gaga, que faz milhões aparecendo até com vestidos de carne e alface; são as ucranianas que para berrar contra qualquer coisa tiram a blusa. É a Hebe doida para dar selinhos. É a Marília Gabriela brincando com óculos diferentes e as mãos grandes que desenham as perguntas no ar. É a atriz Lilian Cabral arrasando como Griselda Pereirão.

Ando começando a ficar preocupada se, para sermos livres sem que ninguém ache que não somos sérias, vamos ter de começar a nos travestir. Essa concorrência é que vai ser séria.
 

São Paulo, o lugar para ser diferente, 2011

(*) Marli Gonçalves é jornalista.Muito séria, embora não pareça, nem queira ser mulher de César. Está treinando fazer cara de paisagem. .
 

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