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Crônica

Confinamento


Confinamento - Gente de Opinião

Ainda que para o bem de todos e felicidade geral da nação, incomoda um longo confinamento e a impossibilidade de abraçar e beijar as pessoas queridas, por conta do tal isolamento social. Até parece que todo mundo quer celebrar a frase de Gabriel Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão: O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão. Não compactuo dessa máxima, a solidão não faz bem ao velho, principalmente agora quando convivemos com a invisível morte em nossos calcanhares.

Somos oriundos da vida em grupo. Vivíamos/vivemos em bando, desde as cavernas. Com a descoberta do uso do fogo, acredito que a hora mais legal da convivência pré-histórica, era quando todos os membros de uma família ou de uma tribo, se reuniam em torno de uma fogueira, ao entardecer. Neste convívio de fim de tarde, imagino, foram pronunciadas as primeiras palavras.

Deitar-se com o sol para renascer revigorado no dia seguinte, talvez tenha sido a primeira lição reencarnatória, que a natureza deu aos sapiens. Muitos humanos esclarecidos gostam de pedir aos familiares para escreverem em suas lápides: Deito-me com o sol!!! É como acreditar na vida pós mortem e, de certa forma, consolar os familiares; é bom saber que seu ente querido não se foi pra sempre, que o espera em algum cantinho deste nosso incomensurável universo. A imortalidade faz bem à vaidade humana.

Mesmo reconhecendo que é preciso atravessar inúmeros buracos negros, ou que o nirvana é um estado de espírito, é agradável ter esperança e acreditar que existe um lugar de descanso, além dos ciprestes, além!... muito além da nossa imaginação, além do infinito, além da filosofia e da ciência, além do multiverso!!!

Niilismo enlouquece, entristece, induz ao suicídio, confunde o pensamento social, não é fácil acreditar no vazio. Não crer em “verdades absolutas” até entendo, mas complica, quando seguidores de Nietzsche dizem que a essência do conceito niilista, se observada de maneira mais minuciosa, pode levar à libertação do ser humano. O nada, de repente, pode ser tudo! Milésimos de segundo atrás, é passado, à frente, é futuro, logo o presente não existe. É pouco, ou quer mais?

Estou/Estava em estado de confinamento forçado e, do nada, começaram a bater em minha porta, visualizei não só o vírus, mascarado e invisível, carregando uma gadanha, acompanhado da velha dúvida filosófica, que trazia pendurada numa das mãos uma rosa branca, símbolo da liberdade dos desejos básicos, e na outra, uma trouxa de pertences, representando o conjunto dos conhecimentos inexplorados; um animal estranho, com duas cabeças, a vida e a morte num só corpo, tenta lhe morder o calcanhar, como que anunciando-lhe um precipício à frente. A senhora das dúvidas retirou-me o chapéu de bobo da corte, se desligou da matéria, e acompanhou-me num voo espiritual, seguindo uma borboleta amarela, livre, porém presa no interior de uma ambulância do Samu, rumo à polêmica da panaceia contra o vírus chinês.   

 São muitos os caminhos filosóficos que nos aproximam da loucura, inclusive o cartesiano, em que tudo é duvidoso e busca-se uma verdade primeira que não se possa colocar em dúvida, usando-se o método dedutivo: “Se duvido, penso, se penso, existo”: “Cogito, ergo sum”, “Penso, logo existo”, ou será que existo, logo penso??? Quem nasce primeiro a vida ou o pensamento? Isso é só o início da loucura… O pensamento filosófico pós Descartes é longo e seria necessário ler inúmeros compêndios de outros pensadores, inclusive Kant, para se chegar a um termo evolutivo razoável.

Confinamento forçado é diferente de solidão por opção. Às vezes a pessoa se isola para pensar, meditar. Na solidão você olha pra dentro, buscando erros e acertos, como forma de se chegar a uma síntese esclarecedora, uma busca por pegadas, deixadas em seu interior por mentes mais lúcidas e iluminadas. No entanto é um tempo curto, salvo se descambar pra depressão.

No enclausuramento você olha pra fora, com medo de ser encontrado pelo vetor da doença invisível, tudo que vem de fora é motivo de temor, absolutamente tudo precisa ser esterilizado, desinfetado, antes de ingressar no seu lar. Receber uma visita?! Nem pensar! O confinamento forçado é tão atemorizante que sequer pode ser usado para meditação, todas as áreas do pensamento foram ocupadas pelo egocêntrico coronavírus.

A amizade e todas as formas de amor presenciais estão sob efeito suspensivo. Salvo o convívio de um casal de velhos, já tão calejado de existência, que o carinho e a dedicação de um são os remédios preventivos do outro, e ambos dividem as lágrimas pela distância dos filhos e netos, lágrimas de amor, é bom que se diga. A separação inevitável será por pouco tempo, se reencontrarão do outro lado da mística cortina.

Só nos resta nesse tal confinamento, também alcunhado por quarentena, pós home office, o exercício da leitura, da escrita, da convivência familiar, das lives entre amigos e, pra quem gosta de TV, assistir os obituários do Jornal Nacional, bons filmes no Amazon Prime ou boas palestras no Youtube, inclusive rir com os humoristas, cultuando células de alegria, únicas imunes ao Corona.

O fato é que pra quem é do grupo de risco, pós setenta, como eu, não é fácil evitar a rabugice. Boa solução seria tomar emprestada a fantasia do palhaço da cidade, meu amigo Chicão, porque dizem que ninguém consegue ficar zangado, com quem o alegra! Se junto com a fantasia vier o talento, até o vírus vai morrer de rir: eheheheh, tchau tchau, Covid!  

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