Domingo, 23 de novembro de 2025 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Opinião

ARTIGO: Brasil - O ocaso da democracia liberal


ARTIGO: Brasil - O ocaso da democracia liberal - Gente de Opinião 

Frei Betto *

Adital - A descoberta de que o Senado brasileiro é um antro de nepotismo, corrupção, tráfico de influências e mordomias aviltantes - embora haja senadores e funcionários éticos, de competente dedicação ao serviço público - traz à tona uma questão mais profunda: o fim de uma era política em que as instituições de poder pairavam acima de qualquer suspeita.

A imunidade é irmã gêmea da impunidade. Como o atual sistema democrático é meramente delegativo, eleitos desprovidos de caráter e valores morais se valem dos labirínticos canais do poder público para, em nome do povo, promover o benefício próprio.

Para isso lançam mão de decretos secretos, artimanhas casuísticas, nepotismo implícito, estendendo uma malha burocrática integrada por funcionários coniventes, cúmplices da desfaçatez, desprovidos de ética e amor à coisa pública por força de proventos e prebendas abusivos.

Nas sociedades capitalistas predominam relações desiguais de poder. Uma das características do parlamento burguês é legislar em causa própria, sobretudo no que concerne a salários, ajudas de custo, propinas e salvaguardas (auxílio-moradia, plano de saúde, transportes extensivos a familiares etc.). "Nada mais perigoso que a influência dos interesses privados nos assuntos públicos", escreveu Rousseau em O contrato social.

Eleger-se vereador, deputado ou senador torna-se, para muitos, uma ambição pessoal destituída de qualquer motivação de serviço ao bem comum. A eleição transforma-se em loteria. O premiado decola para a esfera blindada pela áurea de autoridade, isento do risco de a sociedade investigá-lo e, eventualmente, puni-lo. Este só pode ser julgado por seus pares e instâncias superiores, quase sempre marcados por complacente conivência.

O ocaso da democracia liberal resulta do controle social sobre o poder público. A maracutaia vem à tona graças às investigações da imprensa, de movimentos sociais e ONGs que se dedicam a vasculhar as contas públicas e tornar transparente a atuação dos políticos. Lançam-se, assim, as sementes de uma nova era democrática, a da autoridade partilhada.

Esse exercício cidadão de aferição dos eleitos e da máquina do Estado mina, aos poucos, a escusa politicagem ancorada no coronelismo, no compadrio, nas ameaças veladas e explícitas, na extensa rede de nomeações e compensações, que vão das licitações fajutas ao salário astronômico de um mordomo. Quebram-se as redomas que envolvem o poder, desprivatiza-o, devolve-o à sua precípua finalidade: o serviço ao público.

Na democracia participativa a autoridade é exercida pelo cidadão e pela cidadã, a quem o político, como servidor, tem o dever de prestar contas. Toma-se a sério o conceito de democracia: o exercício do poder, não somente em nome do povo, mas pelo povo e com o povo. Através de mecanismos de aferição do desempenho dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, desvelam-se os seus atos e revelam-se os obscuros meandros que até então favoreciam as trevas encobridoras de safadezas cometidas à revelia do público e com o dinheiro do contribuinte.

Agora todos sabem que o rei está nu. Aos poucos, rompe-se a velha hegemonia de poder que consistia no controle da mídia, no atrelamento dos partidos a figuras caudilhescas, na criação de uma vasta rede de influências através de nomeações voltadas ao fortalecimento das bases políticas que asseguravam a uma família, grupo ou partido a perpetuação no poder.

Refunda-se o Estado moderno. Na América Latina e no Caribe desponta a primavera democrática que rechaça os golpes de Estado, como ora ocorre em Honduras, e veta-se o acesso ao poder de políticos submissos ao receituário neoliberal. Para horror das velhas oligarquias, muitos eleitos tiveram origem política em movimentos sociais, governam em benefício dos mais pobres e não descartam a utopia de uma sociedade pós-capitalista.

É verdade que nesse período de transição da democracia liberal à democracia real, participativa, sombras e luzes se mesclam, como alianças eleitorais entre setores progressistas e conservadores, no ambíguo compasso de uma no cravo e outra na ferradura. Interesses eleitoreiros se sobrepõem ao rigor ético; o uso do dinheiro público se esconde sob cartões de crédito e investimentos institucionais, como fundos de pensão, imunes à transparência; empresas privadas cooptam políticos e partidos através do financiamento de campanhas.

Muito além do sistema político, a democracia deve vigorar também no sistema econômico, nas esferas familiar, racial, sexual, religiosa, nas relações comunitárias e corporativas. Isso não se alcança senão através de mecanismos e instituições que obriguem o Estado a se submeter ao efetivo controle popular.

[Autor de "Diário de Fernando - nos cárceres da ditadura militar brasileira" (Rocco), entre outros livros.  Copyright 2009 - FREI BETTO - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato - MHPAL - Agência Literária (mhpal@terra.com.br)]

* Escritor e assessor de movimentos sociais

Gente de OpiniãoDomingo, 23 de novembro de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

O preço da traição

O preço da traição

De todos os pecados mortais que, ao longo dos séculos vêm degradando a humanidade, existe um que, depois daquele beijo infame de Judas Iscariotes no

Covardia de quem mesmo?

Covardia de quem mesmo?

Covardia foi ter dito que não era coveiro quando inocentes estavam morrendo de Covid. Covardia foi dizer “e daí?” quando as pessoas estavam morrendo

O “cabidão” de comissionados

O “cabidão” de comissionados

No dia 2 de março de 2018, a juíza Inês Moreira da Costa, da 1ª. Vara da Fazenda Pública, determinou que a Câmara Municipal de Porto Velho exonerass

ZUMBI - Uma farsa celebrada

ZUMBI - Uma farsa celebrada

Torturador, estuprador e escravagista. É assim que muitos registros e análises críticas descrevem Zumbi dos Palmares, apesar da tentativa insistente

Gente de Opinião Domingo, 23 de novembro de 2025 | Porto Velho (RO)