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A voz que não se apaga (1)


António da Cunha Duarte Justo - Gente de Opinião
António da Cunha Duarte Justo

Lisboa, dezembro de 2024. No Parque das Nações, onde a Expo outrora prometeu um mundo sem fronteiras, ergue-se agora um cubo de vidro fumado. Dentro, cinco pessoas sentam-se à volta de uma mesa redonda; não há cabeceira, mas o poder sabe sempre onde se sentar.

No centro, um ecrã projecta uma fotografia a preto e branco: homens de uniformes diferentes, chapéus de aço postos de lado, trocam cigarros num terreno de ninguém coberto de geada. O som de Stille Nacht, em alemão e inglês, preenche o espaço, numa gravação memória de 1914. A voz arranha-se na gravação antiga, mas ainda se ouve o impossível: inimigos a tornarem-se homens.

Catarina é a primeira a falar. Tem sessenta e tal anos, cabelo grisalho preso num coque frouxo, mãos que já lavaram demasiadas feridas. Trabalha numa IPSS no Martim Moniz. A cruz que traz ao peito é de madeira barata.
"Eles ouviram qualquer coisa naquela noite. Uma coisa que não estava nas ordens, que não vinha dos generais. Vinha de dentro, da gruta do coração.
Cantaram e lembraram-se de que, antes de serem soldados, eram homens, filhos, pais, irmãos." Catarina faz uma pausa. "Hoje, o Natal é o Continente a bombar músicas em Dezembro. A paz é um anúncio da EDP. A voz do poder aprendeu a falar mais alto do que o coração. E nós? Continuamos a mandar os nossos miúdos morrer longe de casa, agora em missões em defesa da guerra dos outros."

Tomás Almeida, general reformado, agora é consultor de segurança (que é como quem diz: vende medo por medida), acende um cigarro eletrónico. Sopra vapor para o ar, nem o fumo é sério.
"Bonito, Catarina. Muito bonito, esta de sentimentos. Mas aqueles soldados podiam ter perdido a guerra naquela noite. A paz verdadeira não se canta, constrói-se. Com força, com fronteiras, com quem está disposto a defendê-las." Com decisão, aponta o cigarro para o ecrã. "São os fortes que determinam os períodos de paz. Aquilo foi indisciplina. Hoje temos drones, vigilância, psicólogos militares. Garantimos que os soldados não fraternizam com quem deve ser abatido."

Elias é metalúrgico da Lisnave. Tem mãos grandes, nós nos dedos, olhos pequenos, mas atentos. Representa o sindicato na comissão europeia dos trabalhadores do aço.
"O senhor general vê indisciplina. Eu vejo outra coisa: homens que perceberam que estavam a ser enganados. A ganância é sempre a mesma; os ricos mandam, os pobres sangram. Ontem foi na Jugoslávia, no Afeganistão, hoje é na Ucrânia, amanhã é em África, mas o patrão é o mesmo: o lucro. Os mesmos que hoje usam o PIB, suado pelo povo, para comprar morte, em vez de semear vida. E se pegássemos nesse dinheiro todo das armas e o metêssemos em hospitais? Em escolas? Em salários que dessem para viver?"

Ao lado dele, Leonor, de trinta e poucos, jornalista livre que já não acredita em redações, mexe no tablet. A cena de 1914 ganha vida, os soldados movem-se em câmara lenta, partilham chocolate, sorriem.
"Sim, eles foram enganados. O ódio foi a ferramenta; disseram-lhes: 'Nós somos os bons; eles, os maus'. A mesma narrativa corre hoje, General, nas suas narrativas estratégicas. E se, em vez de instrumentalizar o povo para a guerra, o instrumentalizássemos para a paz? Em vez do serviço militar obrigatório, houvesse um serviço social obrigatório em que cada uma podia exercer o seu serviço onde a necessidade o chamasse. Um ano a construir casas, a ensinar crianças, a plantar árvores. Um ano a conhecer o 'inimigo' antes de o matar.
Aprender a construir pontes, não trincheiras, a cuidar da terra e não arrasá-la. A voz do povo, quando livre do veneno da propaganda, é a voz de Deus. E Deus, naquele campo gelado, cantou, Noite feliz...”

Tomás riu-se, com um som seco.
“Deus? A voz do povo é volúvel, emocional. Precisa de direção. Sem divisão, sem o “nós contra eles”, não há coesão nacional, não há identidade a defender. O diabo, como dizem, é aquele que divide. Mas às vezes, a divisão é necessária para afirmar quem somos.”

Catarina ergue-se e a sua sombra projetava-se sobre os soldados holográficos.
“Não! O diabo é exatamente aquele que divide para se afirmar! Deus une no canto, no reconhecimento do outro como irmão. Aquele momento de 1914 foi uma brecha no projeto diabólico da guerra. Os comandantes, sim, esses instrumentos do poder distante, apagaram-na. Proibiram a paz. Porque a paz verdadeira desarma os poderosos.”

A quinta pessoa não falou ainda. Rui é historiador, apenas observa. De cabelo desgrenhado, óculos tortos, silêncio de arquivo, representa a memória. Rui toca no tablet e o ecrã muda.
Agora vêem-se telegramas: "Esta fraternização é traição." "Qualquer oficial que permita contacto será julgado." E depois, imagens de 1915: a lama, os mortos, o gás mostarda a devorar pulmões.

Ninguém fala, um silêncio pesado cai sobre a sala!

Elias rompe o silêncio, com a voz rouca de tabaco e fábricas:
"
Alemães, ingleses, franceses enterraram os mortos juntos, com as próprias mãos. Reconheceram-se ao aceitarem a humanidade comum que os motivava a agir assim. É esse o caminho: Nivelar as trincheiras da Ucrânia, da Rússia, da Europa inteira, e sobre elas erguer torres de paz. Fábricas de esperança.”

Leonor inclina-se para a frente:
"Mas porquê a guerra, afinal? O espírito de 1914 não morreu. "A guerra destrói a esperança antes mesmo de destruir os corpos. Mata o futuro antes de matar as crianças."

Rui mexe de novo no tablet. Aparecem imagens de agora: manifestações a favor da paz, voluntários de nações inimigas ajudando civis, jovens de ambos os lados de uma fronteira imaginária a plantar árvores juntos. São fragmentos, pequenas tréguas natalícias invisíveis para os grandes noticiários empenhados em justificar a cultura bélica.

Catarina fecha os olhos e começa a cantar, baixinho:

"Noite feliz, noite de paz..."

A voz é frágil, cansada, mas não quebra.

Tomás olha para ela. Quer dizer qualquer coisa, mas não diz. Elias murmura a melodia. Leonor sorri, com os olhos marejados. E Rui, sempre calado, move os lábios.

O Historiador aumenta o volume do canto original de 1914. As duas canções, a do passado e a do presente, entrelaçam-se, criando uma harmonia estranha e comovente. Por um instante, as divisões ideológicas parecem trincheiras a serem aterradas.

A reunião não chega a lado nenhum. As decisões de guerra seguirão o seu curso nos corredores do poder, enquanto o povo não conseguir ter Voz. As armas continuarão a ser vendidas. As guerras terão financiamento. Os discursos inflamados justificando a guerra continuarão a correr nos meios de comunicação e nas redes sociais como veneno doce.

Mas naquela sala, durante três minutos e quarenta segundos, uma verdade ressuscitou: a paz não é um tratado. É um canto: Noite feliz, Adeste Fideles!

É um canto que nasce onde as ordens não chegam e que reconhece no rosto do inimigo o mesmo medo, a mesma saudade de casa, a mesma fome de sentido.

O ecrã apaga-se. A sala fica vazia.

Mas lá fora, no Martim Moniz, um grupo de jovens, portugueses, brasileiros, guineenses, angolanos, ucranianos, russos e iranianos, acende velas. Cantam “Noite Feliz” em quatro línguas ao mesmo tempo. Era umNoite Feliz” um pouco desafinado, imperfeito, mas sinal de uma imperfeição redentora. É pouco, mas é começo.

A paz é o acto de resistência através da voz humana que se recusa a calar. Resistência pressupõe hombridade e preparação para não se deixar arrastar pelo vento ciclónico militarista que parece até arrancar e arrastar os “cedros do Líbano”.

Dedico este conto:

Ao meu país, que já foi império e hoje mal é casa.
Aos que cantam quando mandam calar.
Ao Natal que ainda pode vir.

António da Cunha Duarte Justo
Lisboa, Inverno de 2024

Nota em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10552

 

PRESÉPIO DE LUZ

 

No jardim secreto da alma

onde o silêncio aprende a florir

o Natal não chega:

nasce.

 

Não é data,

é chama antiga

a arder no coração do mundo,

estrela interior

a abrir o céu por dentro.

 

Num estábulo minúsculo,

onde o divino se inclina,

terra e céu tocam-se.

E a Luz entra na História

no corpo frágil de um Menino,

 

Seu nome é Jesus.

Nele a humanidade inteira

se entregue como dom.

Presente sem preço,

sem embrulho,

oferta nua

no berço da Terra.

 

Nele o mistério abre-se:

Não somos apenas quem recebe.

Somos o presente.

 

Eu-Tu-Nós,

existimos para ser dados:

como pão, abraço,

como palavra justa que salva,

ou silêncio que ampara.

Quando o sabemos,

tudo se torna dádiva

e a gratidão aprende a cantar.

 

Estamos embrulhados em Deus:

feitos de musgo e estrela,

poeira e infinito,

ligados com fios invisíveis

a tecer-nos em pessoas verdadeiras.

 

Até o sol é oferta,

coração em fogo

a aquecer a pele do planeta

e a erguer o olhar da alma.

 

A estrela não guia só à Belém da História,

mas à que dorme em nós,

no fundo fértil do ser

onde a Luz ensaia nascer.

 

Ali, Deus dança.

Energia em êxtase,

desejo puro,

movimento de ascensão

contra o peso do medo

e da cinza.

 

A voz divina ecoa:

no mar, no vento,

na sede dos pobres por justiça,

no olhar dos animais

quando a madrugada recomeça o tempo.

 

Que este Natal nos acorde

para o assombro de sermos oferenda viva,

continuação da Luz

num mundo ferido.

 

Feitos de terra e céu,

embrulhados para a vida,

somos chamados a dançar,

a oferecer,

a crescer em humanidade.

 

Mesmo sob as cinzas e o ruído

de uma sociedade cansada,

governada pelo útil

e pelo passageiro,

o Natal resiste,

Brilha e espera.

 

Ele nasce

sempre

que alguém

se oferece.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10542

 

Nota

Este poema nasce da impressão, tantas vezes inquietante, de habitarmos um mundo que, apesar do seu progresso técnico e organizativo, parece agir contra o humano: um mundo orientado pelo útil, pelo imediato e pelo descartável, onde a vida corre o risco de perder profundidade, sentido e ternura.

Diante dessa experiência, a figura de Jesus surge aqui não como pertença exclusiva de um credo, mas como protótipo do humano pleno e sinal de uma criação inteira a caminho. Nele reconheço uma síntese viva do que o humano pode vir a ser: relação, entrega, consciência, compaixão, natureza humano-divina. Por isso, a sua luz ultrapassa fronteiras religiosas e também as negações ateias, não para as negar, mas para as iluminar a partir de dentro.Diante dessa experiência, a figura de Jesus surge aqui não como pertença exclusiva de um credo, mas como protótipo do humano pleno e sinal de uma criação inteira a caminho. Nele reconheço uma síntese viva do que o humano pode vir a ser: relação, entrega, consciência, compaixão, natureza humano-divina. Por isso, a sua luz ultrapassa fronteiras religiosas e também as negações ateias, não para as negar, mas para as iluminar a partir de dentro.

Jesus aparece, assim, como estrela interior, não imposta, mas oferecida, capaz de orientar cada pessoa no seu próprio percurso de humanização. Uma luz que não divide, mas convoca; que não domina, mas inspira; que não se impõe como dogma, mas se propõe como caminho e sentido.

O Natal, neste horizonte, deixa de ser apenas memória ou tradição: torna-se apelo permanente a uma humanidade mais autêntica, reconciliada consigo mesma, com a Terra e com o mistério que a atravessa.

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