Quinta-feira, 28 de março de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Demarcadores, Heróis Olvidados – Parte II


Demarcadores, Heróis Olvidados – Parte II - Gente de Opinião

Bagé, RS, 04.03.2020


Para mim, este heroísmo é bem mais nobre e bem mais difícil, demanda muito mais energia e tenacidade, do que o heroísmo do momento, de duração efêmera, como o que requer o ataque de uma trincheira inimiga: a primeira é uma temeridade refletida, a segunda, uma temeridade que se incendeia como a pólvora negra, ao calor repentino do entusiasmo contagioso das massas, que arrastam o homem às maiores loucuras.
Lá é o comandante que fascina a massa com o seu entusiasmo viril, aqui a massa que eletriza o comandante,
envolvendo-o na onda magnética dos hurras comunicativos...
(Coronel Amílcar Armando Botelho de Magalhães, 1942)

 

Tribuna da Imprensa, n° 3057

Rio de Janeiro, RJ ‒ Quarta-feira, 03.02.1960

Fronteira Entre Brasil e Guiana se Resolve Hoje

 

Depois de duzentos e sessenta e dois anos, será encerrado hoje, definitivamente, o problema das fronteiras entre o Brasil e a Guiana Francesa. As 16h00, no Itamarati, o Ministro Láfer recebera do embaixador Pio Correia o relatório final da Comissão Franco-brasileira e o mapa que determina os limites entre o nosso País e a Guiana.

 

As negociações à respeito tiveram início no século XVII, no ano de 1698 e culminaram no Tratado de Utrecht, em 1713. No início deste século, em questão arbitrada pelo presidente da Suíça, o Barão do Rio Branco demonstrou que a fronteira real era o Rio Oiapoque, como determinava o Tratado.

 

Os franceses pretendiam estender a Guiana até o Rio Araguari. O Brasil, ao ganhar a questão, aumentou o seu território em cerra de 260 quilômetros quadrados.

 

Os mapas finais e diversos documentos históricos, inclusive uma cópia autêntica do Tratado de Utrecht serão expostos, durante a cerimônia. A comissão brasileira era composta pelo General Bandeira Coelho [presidente] e os Srs. Maurílio Cunha e Leônidas de Oliveira. (TDI, N° 3057)

 

Jornal do Commercio, n° 105

Rio de Janeiro, quarta-feira, 03.02.1960

Demarcação Final da Fronteira
com a Guiana Francesa

Relatório e Mapas Serão Entregues
Hoje ao Ministro Lafer

 

Está marcada para hoje, às 16H00, no Itamarati, a entrega ao ministro Horácio Lafer do relatório e mapas referentes à definitiva demarcação das nossas fronteiras com a Guiana Francesa.

 

A propósito dessa solenidade, que é o coroamento de um trabalho que teve suas origens no ano de 1695, o embaixador Manuel Pio Corrêa esteve na sala de imprensa do Ministério, para uma palestra esclarecedora com os jornalistas.

 

Disse o chefe do Departamento Político e Cultural do Itamarati que nomes dos mais ilustres da diplomacia brasileira estiveram empenhados nesses estudos, como Rio Branco e Duarte da Ponte Ribeiro, e os membros da Comissão Mista Franco-Brasileira pude­ram chegar pacificamente a um acordo, agora, reco­nhecendo os direitos do nosso País a uma faixa de quatrocentos quilômetros quadrados, graças a esse espírito de continuidade, à documentação e ao carinho com que são conservados tantos documentos e mapas nos arquivos da Casa de Rio Branco.

 

DÚVIDAS DIRIMIDAS

 

Acentuou o Sr. Pio Corrêa que todas as dúvidas fora dirimidas, e, prevaleceu a realidade do Tratado de Utretch de 1713, e que serviu de orientação para a decisão do presidente da Confederação Helvética, favorável ao Brasil, no julgamento que ele presidiu no ano de 1900. Agora, após tantas demandas e tão largo espaço de tempo, no curso do qual chegamos a ficar sem essa faixa de terra [que é o território do Amapá] a questão chegou a bom termo e serão reintegrados ao território brasileiro esses 400 km2.

 

Na entrega do relatório, o embaixador Pio Corrêa fará ao ministro de Estado um histórico dessa centenária questão. O chefe da delegação brasileira, Gen Bandeira Coelho, esclareceu, ainda, o embaixador Pio Corrêa, ficou sensibilizado com a cordialidade e o espírito compreensivo dos delegados franceses. (JDC, N° 105)

 

O Mundo Ilustrado, n° 181

Rio de Janeiro, RJ - 10.06.1961

Em Plena Mata, Longe do Mundo,
são as Fronteiras

 

O resto era o infinito coberto de espessas nuvens que nos encobriam a clara visão da longínqua serra Tamaquari, e por trás delas o objetivo a perlustrar e a demarcar, embora as mais duras adversidades: demarcar a linha de fronteira Setentrional do Brasil com a Venezuela pela cumeada do divisor dos tributários do Rio Negro e das contravertentes do Rio Orenoco.

 

Éramos nove, turma adiantada da expedição que reeditava toda a autenticidade das heroicas bandeiras de Raposo e Anhanguera, Borba Gato e Palheta, Pedro Teixeira e Lobo D’Almada. Eles alargaram do Sul e do Centro para o bruto Oeste e do Leste para o Norte e Noroeste as fronteiras coloniais do Brasil, ganhando imensas terras de Castela, mas sem demarcá-las, sem deixar nos seus confins a presença física de marcos inequívocos de domínio territorial.

 

Esta árdua tarefa caberia a homens de igual capacidade de sacrifícios, a homens que, através de séculos e sucessivas gerações, legaram a outros da mesma têmpera a épica intrepidez demarcatória.

 

Muitos desses homens eu os conheço, com galões de General, teodolito às costas ou com terçados à mão rude e no jamachi. Deixei-os no Rio Padauari, desmatando terra firme para acampamentos, subindo o afluente Marari, puxando canoas com mãos esfoladas, remando, abrindo picadas e superando dia a dia as piores condições de sobrevivência para chegar ao sopé da íngreme Tapirapecó, vencer os alcantis sem temor de fatalidades e cumprir, afinal, a tarefa anônima de demarcação de limites. Éramos nove, os oito companheiros que de mim se despediram, cumprindo o breve período de vanguarda da campanha, voltaram a reunir-se aos irmãos do dever que o País ignora. Eu voltei do Marari.

 

A EXPEDIÇÃO EM MARCHA

 

Quando cheguei a Belém na última semana de outubro de 1960, credenciado pela Divisão de Fronteiras do Itamarati para integrar-me na campanha que a Comissão Brasileira Demarcadora de Limites ia empreender, todos os preparativos já estavam ultimados pelo Gen Bandeira Coelho. Meu saco de petrechos estava pronto, com rede e mosquiteiro.

 

Partimos às 23h00, do dia 31, com destino ao Sul de Marajó. Duas horas depois nosso barco fundeou no Paraná do Arrozal. Ali acabaríamos o resto da madrugada sem Lua; ao alvorecer continuaríamos na rota fluvial até o imenso Amazonas. Ao quarto dia de navegação ancoramos em Óbidos. A antiga aldeinha dos índios Pauxis estava adormecida na colina que olha a Foz do Trombetas.

 

No porto sujo de fiapos de juta caboclos comerciavam peixe.É aqui em Óbidos que recrutamos o pessoal para a campanha. Esses homens são os mais duros da Amazônia, e só eles suportam os sacrifícios da expedição”, falou-me o velho e calejado Leônidas Ponciano de Oliveira, mudando o cachimbo de canto a canto da boca já ferida por muitas febres.

 

O sertanista, com trinta anos de serviços demarcatórios, sabia, de certo, o que dizia. Eu o saberia horas depois, vendo aqueles caboclos decididos disputando o privilégio do engajamento. Ao todo, 86 armaram rede nos dois batelões amarrados ao nosso barco como alvarengas.

 

E seguimos no rumo de Manaus, no rumo do Rio Negro, pelo qual teríamos acesso ao Rio Padauiri e seu tributário Marari. Por este, raso e pedrento, chegaríamos ao afluente Madona e a Tapirapecó.

 

NA MEMÓRIA DOS TEMPOS

 

Há mais de dois séculos, daquele mesmo porto de Belém, então escorregadio barranco onde a guarnição do Presépio se ajuntava na pesca de tucunarés e tambaquis, partira a primeira expedição para demarcar a fronteira selvagem do Noroeste do Brasil lusitano com os confins da Nueva Andaluzia. E tantos e tantos decênios transcorridos, desde outubro de 1754, a linha limítrofe, não mais dos domínios de Portugal e Espanha, mas do Brasil e da Venezuela, ainda está por concluir-se em mais de 800 quilômetros, sobre lombadas rochosas da cordilheiras Pacaraima, Parima e Tapirapecó.

 

Cumpria, àquela época, atender instruções pertinentes ao Tratado de Madri; efetivamente atender às disposições do Tratado para a necessária configuração jurídica e física do nosso território, esquecida desde a Capitulación de la Partición del Mar Oceano [Tordesilhas, 07.06.1494], que estipulava o prazo de 10 meses, contados a partir do dia do pacto, para a demarcação do Meridiano de 370 léguas a Oeste de Cabo Verde, Mas foi tudo debalde: durante 5 anos a delegação luso-brasileira, chefiada por Mendonça Furtado, esperou em Mariauá pela delegação espanhola chefiada por Don José Iturriaga e que deveria chegar àquela região navegando pelo Orenoco, Cassiquiare e Rio Negro. Desta vez, porém, não haveria espera demorada: o delegado venezuelano Jorge Pantchenko nos alcançaria, com seus companheiros, próximo da Foz do Rio Padaurí. E alcançou-nos, decidido a sofrer. A fronteira de NE parte da Pedra de Cucuí, na margem esquerda do Rio Negro e segue por uma linha geodésica rumo SE até o salto Huá. É um imenso Igapó essa fronteira demarcada pelo Barão de Parima no período de 1879 a 1883 e confirmada pelo Protocolo assinado Brasil e Venezuela em 09.02.1905.

A OESTE DO DESCONHECIDO

 

Planejara o Gen Bandeira Coelho chefe da CBDL, duas campanhas: uma, fronteira com a Guiana Francesa, visava a fixação de marcos divisórios, dado que o alinhamento do divisor já havia sido executado por outras campanhas: e outra, fronteira com a Venezuela, no NO amazônico. Circunstâncias adversas, porém, alteraram o plano de duas faces, reduzindo-a a um só objetivo ‒ ou seja, marcação sobre Tapirapecó, numa extensão que alcança 200 km, desde a nascente do Rio Madona, afluente do Marari na Latitude Norte de 01°12’16,5” e Longitude de 64°55’35,8”, ao meio do salto Hutá na serra Cupí.

 

FOI TERRÍVEL OBSTÁCULO, MAS VENCIDO

 

Para o Itamarati, responsável pela demarcação das fronteiras, o sertanista demarcador, o caboclo auxiliar que abre caminho pela selva, pelos Rios e pelas montanhas, são apenas homens a serviço da Pátria, e não lhes paga o merecido, o mínimo devido. Dir-se-ia que o próprio governo ignora a soma de sacrifícios dos homens da CBDL e a dedicação de quantos compõem a Divisão de Fronteiras, orientada pelo diplomata e escritor Guimarães Rosa. Demais, o povo, as elites, incluindo instituições culturais, ignoram que o Brasil, ainda hoje, tem quase 1.000 quilômetros de fronteira a demarcar.

 

Anonimamente, o Gen Bandeira Coelho, que herdou do seu antecessor, Cmt Bráz de Aguiar, um legado de penas e ideais, organiza e empreende expedições aos limites Setentrionais, constituindo mérito da CBDL [1ª Divisão] o seguinte quadro de demarcações concluídas: limites com a Guiana Inglesa ‒ 1.605 km; com o Suriname ([1]) ‒ 598 km; com a Colômbia, 1.643 km; com Peru ‒ 1.956 km e com a Venezuela ‒ 1.000 km. Com este país restam exatamente 838 km a demarcar. Cada quilômetro de penetração, de estudo e de fixação de marcos representa uma soma enorme de trabalhos vigorosos.

 

A VOLTA DO DESCONHECIDO

 

Longe, embora, dos meus companheiros de jornada pelos Rios Amazonas, Negro, Padauiri e Marari, sei que, turma por turma, estão de regresso a Manaus, Óbidos e Belém. Uns vitimados pela malária, outros com lesões, e todos estropiados ‒ pois tiveram de para galgar a cordilheira Tapirapecó, escavar degraus na rocha e sofrer intempéries cruéis. Tapirapecó ainda verá os homens da CBDL, e depois a medonha Parima, com suas escamas invioladas. As bandeiras continuarão, sacrificando autênticos heróis na demarcação de limites. (OMI, N° 181)

 

Bibliografia:

 

JDC, N° 105. Demarcação Final da Fronteira – Brasil – Rio de Janeiro – Jornal do Commercio, n° 105, 03.02.1960.

 

OMI, N° 181. Em Plena Mata, Longe do Mundo, são as Fronteiras – Brasil – Rio de Janeiro – O Mundo Ilustrado, n° 181, 10.06.1961.

 

TDI, N° 3057. Fronteira Entre Brasil e Guiana se Resolve Hoje – Brasil – Rio de Janeiro – Tribuna da Imprensa, n° 3057, 03.02.1960.

 

 

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

·     Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·     Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·     Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·     Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·     Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·     Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·     Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·     Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·     Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·     Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·     Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·     Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·     Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·     E-mail: [email protected].


Veja também: Demarcadores, Heróis Olvidados – Parte I

 



[1]    Guiana Holandesa.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoQuinta-feira, 28 de março de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Terceira Margem – Parte DCCXX - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte I

Terceira Margem – Parte DCCXX - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte I

Bagé, 27.03.2024  O naufrágio deste navio teve lugar na Costa do Albardão que compreende mais de quarenta léguas frequentadas por homens de má índo

Contrarrevolução de 31 de Março

Contrarrevolução de 31 de Março

Bagé, 25.03.2024 Temos a honra de repercutir o artigo do Advogado, Escritor e Consultor Jurídico Dr. Jacinto Sousa Neto. A História Secreta e Real

Terceira Margem – Parte DCCXIX - A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte IX

Terceira Margem – Parte DCCXIX - A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte IX

Bagé, 25.03.2024 Tragédia no Oceano(Múcio Scervola Lopes Teixeira) À Memória dos 120 Náufragos do Paquete Rio Apa Senhor Deus dos desgraçados!Dizei-

Terceira Margem – Parte DCCXVIII - A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte VIII

Terceira Margem – Parte DCCXVIII - A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte VIII

Bagé, 22.03.2024  Relatos Hodiernos – Naufrágios Newton Vilela JUNIOR (2015) A Terra de Ninguém [...] Segundo relatos do historiador Homero Vasque

Gente de Opinião Quinta-feira, 28 de março de 2024 | Porto Velho (RO)