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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte CCCII - Expedição Centenária Roosevelt‒Rondon 3ª Parte – X Navaité – P. Ten Marques (KM 100)


Navaité Ponte Ten Marques - Gente de Opinião
Navaité Ponte Ten Marques

Bagé, 15.09.2021

 


A Cachoeira

(Castro Alves)

 

Mas súbito da noite no arrepio

Um mugido soturno rompe as trevas...

Titubantes ‒ no álveo do Rio ‒

Tremem as lapas dos titãs coevas!

Que grito é este sepulcral, bravio,

Que espanta as sombras ululantes, sevas?

É o brado atroador da catadupa

Do penhasco batendo na garupa! [...]

 

Então doido de dor, sânie babando,

Com a serpente no dorso parte o touro...

Aos bramidos os vales vão clamando,

Fogem as aves em sentido choro...

Mas súbito ela às águas o arrastando

Contrai-se para o negro sorvedouro...

E enrolando-lhe o corpo quente, exangue,

Quebra‒o nas roscas, donde jorra o sangue.

 

Assim dir‒se‒ia que a caudal gigante

‒ Larga sucuruiúba do infinito ‒

Com as escamas das ondas coruscante

Ferrara o negro touro de granito!

Hórrido, insano, triste, lacerante

Sobe do abismo um pavoroso grito...

E medonha a suar a rocha brava

As pontas negras na serpente crava!

 

Dilacerado o Rio espadanando

Chama as águas da extrema do deserto...

Atropela‒se, empina, espuma o bando...

E em massa rui no precipício aberto...

Das grutas nas cavernas estourando

O coro dos trovões travam concerto...

E ao vê‒lo as águias tontas, eriçadas

Caem de horror no abismo estateladas... [...]

 

24.10.2014 (sexta‒feira) – AC03 – AC04

 

Iniciamos logo cedo o extenuante transporte de todo o material para o acampamento a jusante do Salto Navaité. Existia uma trilha relativamente recente o que facilitou o transporte das embarcações, utilizando um carrinho que o Dr. Marc trouxera dos EUA para esta fina­lidade. Como o trajeto era muito longo, resolvi realizar o transporte em 3 etapas, assim recuperava o fôlego após cada carregamento retornando sem carga até a etapa anterior até chegar, por fim, ao local do acampamento. Levamos a manhã inteira para concluir a portagem.

 

Após o almoço, passamos a tarde reconhecendo e fotografando o complexo de Navaité. O maior estreito ou angustura, como diriam nossos avoengos, de todo o Roosevelt. Sua largura, que a montante, variava de 20 a 30 m, passava agora por uma estreita fenda de menos de 02 m de largura, e, como sua vazão permanece praticamente idêntica à de montante, isso indica que sua seção transversal é provavelmente a mesma, ou seja, a profundidade neste local é muito grande, em torno de 15 a 20 metros. Observando os grandes lajedos de arenito e conglomerados friáveis, eu identificava alguns deles, onde Rondon, Roosevelt e Cherrie tinham sido fotografados.

 

A beleza agreste daquelas formações, o medonho fragor do caudal confinado, de repente, em uma angustura tão incomum e as águas tumultuárias e refulgentes, emocionavam‒me. Engarupado na anca da história, eu via ou sentia a presença daqueles ilustres personagens que há cem anos palmilharam aqueles sítios, gravando indelevelmente sua passagem em cada um deles.

 

25.10.2014 (sábado) – AC04 – Ponte Ten Marques

 

Parti alguns minutos antes dos demais com o intuito de visitar a fazenda que aparecia nitidamente à margem esquerda do Rio. Seu Gerente era um mineiro sisudo, mas boa praça, que morava sozinho naqueles ermos sem fim. O Rio apresentava agora um traçado bastante suave, pleno de estirões e amplas curvas. Estávamos próximos à ponte que dá acesso à Aldeia Tenente Marques, chefiada pelo João “Brabo” ([1]) quando aproximou‒se numa voadeira, o 3° Sgt BM Douglas e um nativo. Cumprimentamos efusivamente o amigo, mas estranhamos o fato de ele estar tão próximo à primeira ponte (km 100) e não na ponte do Km 124, onde deveria estar e isso me inquietou. Logo adiante cruzou velozmente uma lancha com 7 índios armados e carrancudos: confirmando meu mau pressentimento. O 3° Sgt BM Douglas fora informado que o João “Brabo” ia impedir‒nos de prosseguir a partir da 1° ponte (Tenente Marques).

 

Aportamos na margem esquerda, a montante da ponte (11°38’32,52” S / 60°27’13,79” O), depois de navegar 29 km, fora da Terra Indígena onde fomos informados pelo 3° Sgt BM Douglas e o Cabo BM Hiuri Marcel de Sousa Lopes que não poderíamos continuar a partir daquele ponto. Logo depois do Sgt BM Douglas ter explicado a situação, comecei a descarregar o caiaque, colocando as tralhas no reboque da camionete dos bombeiros enquanto meus parceiros ainda imaginavam que poderiam convencer o tal do João “Brabo” de nos deixar passar. Eu conhecia os antecedentes do fanfarrão e sabia que ele não voltaria atrás. De repente surge o tal João, na Ponte, vestindo apenas um calção e um cocar, seguido de dois de seus capangas e diversos adolescentes e crianças, entoando canções tribais. O Sgt BM Douglas nos informara que, quando adentrou na Aldeia dos Cinta‒Larga, o João e demais lideranças estavam participando, devidamente paramentados com roupas de grife e tudo mais, de uma reunião.

 

Tão logo ele se aproximou de nós, começou a falar, intercalando em voz alta o português com sua língua nativa, dizendo que estávamos invadindo sua Terra. A pantomima durou alguns minutos e o líder tribal fingia estar muito irritado com a nossa presença. Chegou a cogitar de que poderia nos manter como reféns na Aldeia até que lhe fosse assegurada a construção de uma nova ponte sobre o Roosevelt. Quando ele disse isso olhei acintosamente para a pistola que o Coronel Angonese trazia à cintura. Podíamos perceber, nitida­mente, que ao usar de palavras mais chulas ou ameaçadoras, ele optava pela língua nativa permitindo que seus seguidores admirassem sua pretensa “bravura” e nós ficássemos sem saber o que ele dizia.

 

Depois de encerrar sua engendrada e burlesca encenação, ele foi amainando a linguagem e permitiu que fotografássemos a ele e as crianças Cinta‒Larga. Terminamos o carregamento, embarcamos na viatura do Corpo de Bombeiros e nos deslocamos para Vilhena, onde teríamos de refazer nosso planejamento, descobrindo um novo ponto de partida a jusante do Rio Cardoso já no Estado do Mato Grosso e longe da TI Cinta‒Larga. Deixávamos para trás, portanto, o trecho mais preocupante de toda a jornada e onde a Expedição Original mais penou. Tínhamos percorrido, até então, apenas 100 km do Rio Roosevelt. Da atual Ponte Tenente Marques até a Foz do Rio Capitão Cardoso a Expedição Científica demorou quase um mês (07.03.1914 a 06.04.1914), para percorrer somente 110 km (uma média de 3,55 km/dia) e uma diferença de altitude de 133 metros (1,2m/km). Foi neste trecho onde ocorreram alguns dos reveses mais significativos de toda a jornada:

 

² 15.03.1914: Canoeiro Antônio Simplício da Silva (Afogado);

 

² 16.03.1914: Cachorro Lobo (Flechado);

 

² 30.03.1914: Presidente Theodore Roosevelt (Perna ferida);

 

² 03.04.1914: Cabo Manoel Vicente da Paixão (Assassinado);

 

² 03.04.1914: Júlio (Foragido);

 

² 07.03.1914 a 06.04.1914: Naufrágio de 4 canoas.

 

A repórter Juliana Arini, da Revista Época, também testemunhou a ridícula encenação de João Brabo – momento e cenários diferentes mas um idêntico roteiro e as mesmas ameaças:

 

Diário: A Terra dos Canibais

 

Revista Época, Juliana Arini, 24.02.2007

 

Depois de cinco horas de voo e seiscentos quilômetros de estrada, finalmente conseguimos chegar a Cacoal, em Rondônia. A ideia era visitar o nordeste do estado para fazer uma matéria sobre os índios cintas‒largas, que vivem sobre a maior jazida de diamantes do Brasil. De tradição guerreira, os cintas‒largas são um dos povos mais temidos da Amazônia. Ficaram isolados durante séculos na região entre os rios Roosevelt e Aripuanã. Vivem em uma porção ainda intacta da Floresta Amazônia, onde mosquitos “porvinhas” e mutucas tiram sangue dos visitantes desavisados. Acusados de serem os responsáveis pela chacina de 29 garimpeiros, em 2004, os cintas‒largas já foram alvo de inúmeras matérias negativas. Por isso, e com toda razão, detestam jornalistas.

 

Apesar da resistência de falaram com a imprensa, havia conseguido que alguns caciques aceitassem conversar sobre o assunto mais repelido na região, o garimpo ilegal de diamantes do igarapé Laje. Quando chegamos a Cacoal, descobri que meu contato, o cacique Pio, estava preso na aldeia, depois de um acidente com o carro da Fundação Nacional de Saúde – Funasa. Uma antropóloga que encontrei em Porto Velho me falou sobre outra liderança que eu deveria procurar, o índio João Bravo, um dos caciques mais influentes da região. A primeira sensação de estar entrando em outro mundo começou em Riozinho, cidade próxima a Cacoal, onde vários cintas‒largas compraram casas. O povoado é uma espécie de aldeia urbana, na qual os índios ficam quando precisam procurar tratamento médico, receber aposentadorias ou comprar roupas e mantimentos.

 

Os funcionários da Funai me contaram que o cacique João Bravo cinta‒larga possuía uma casa em Riozinho e tive a ingênua ideia de ir visitá‒lo para conversar. Como já tinha encontrado com seus funcionários ‒ uma cozinheira e um vigia ‒ resolvi dar dois passos além da porta de entrada da casa, para ver quem estava na varanda. Péssima ideia. O cacique estava sentado à mesa, de costas para nós, sem camisa e de cara fechada. Era corpulento e baixo, como a grande maioria dos cintas‒largas. Pelo seu semblante irritado, eu percebi que não éramos bem‒vindos.

João Brabo e Hiram Reis - Gente de Opinião
João Brabo e Hiram Reis

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