Sábado, 25 de maio de 2024 - 13h10
Deixe- me apresentar a você, caro leitor, esta personagem
que vive, há décadas, no interior do meu cérebro, e mistura suas memórias às minhas como se tivéssemos
intimidade para tanto: não temos. Aliás, somos bem diferentes. Sequer parecemos
a mesma pessoa, exceto por um hábito que se tornou uma obsessão: colecionar
palavras.
Refiro-me a uma criança
que, durante seu processo de alfabetização, apaixonou-se perdidamente pelos
sons das letras, das sílabas e das palavras, claro. A partir de então, passou a
acumular bloquinhos, cadernetas e até cadernos, para anotar palavras; sempre
considerei isso meio estranho.
Faziam parte de sua
coleção palavras de peso; assim, ostentava seu conhecimento aos coleguinhas da
vizinhança e do colégio. Quando incluía uma palavra nova em uma frase qualquer,
gostava de ver o espanto e a admiração no rosto das pessoas. Deviam pensar: Inteligência
rara!
Com relação ao
significado de todos os itens da coleção, confessava a si mesma que não os
conhecia: como poderia sabê-los, se tinha só 8 anos?
Um dia, na saída da
escola a caminho de casa, sob o sol do meio-dia a queimar-lhe a pele, ouviu um
curioso diálogo entre duas mulheres que se encontravam paradas no caminho:
— Você já viu a filha
da Dora, a que chegou do Rio de Janeiro?
— Aquela que só anda
pendurada no pescoço do namorado?
— Vi, sim. É bonita, mas é uma devassa!
Ao ouvir tal palavra,
nossa personagem ficou impactada: jamais ouvira palavra tão linda! Para não
esquecer tanta beleza, acelerou o passo e correu para casa. Assim que chegou,
pegou o bloquinho e escreveu na primeira linha, com letra caprichada:
D E V A Ç A
Palavra anotada, tratou
de guardar o bloquinho cuidadosamente na pasta do grupo escolar onde estudava.
Afinal, aquele bloquinho continha um tesouro— Pensou.
O sol anuncia um novo
dia.
A mãe, como sempre
fazia, acordou a filharada para a escola. Na mesa, o café com leite e pão e a
manteiga de sempre; o desjejum básico de toda sua infância. Uma delícia.
Uniformizada e
penteada, nossa personagem se aproxima da porta para sair. Porém, hesitante,
faz uma pausa e dirige-se a sua mãe:
— Mamãe, hoje é o
aniversário da minha professora. Não tenho nenhum presente pra levar.
Ao que a mãe
prontamente responde com sua incomparável sabedoria:
— Minha filha, queres
entregar um presente para tua professora? Dá-lhe um abraço e entrega-lhe um cartão escrito
por ti. Capricha na letra e escreve frases bonitas, de afeto. As professoras gostam
disso.
Alegremente, a criança
caminha até o grupo escolar. Depois do sinal de entrada, as turmas ocupam as
respectivas salas de aula.
Na turma de nossa
personagem, os alunos, um a um, levantam-se para cumprimentar a jovem
professora. Ela estava radiante, mais bonita do que nos outros dias; havia bandeirinhas
e flores de várias cores, feitas em papel crepom, enfeitando o ambiente e,
sobre a mesa, presentinhos embrulhados em papel de presente e em papel de pão. Era
uma alegria só!
Alunos e professoras
visitantes das salas vizinhas, estavam sorridentes, agitados, aguardando o grande
momento da festa, algo esperado por todos: um belo bolo de chocolate, com vela
e tudo, que, na hora certa, seria servido.
Diante daquele cenário,
nossa colecionadora de palavras caprichou no “cartão” (na verdade, precisou
arrancar uma página em branco de seu caderno de desenho, para fazê-lo).
Trabalho feito, assinou seu nome, dobrou o papel e aproximou-se da professora:
abraçou-a timidamente e, orgulhosa, entregou-lhe seu presente.
O PRESENTE
A professora, encantada com tanto carinho, abriu a folha de papel que acabara de receber de uma de suas alunas favoritas. Então, deparou-se com isto:
1.professora Lindalva
2.eu gosto da senhora
3.a senhora é bonita e
se pendura no pescoso do seu
namorado
4. a senhora é uma
devaça de-va-ça
5.parabéns.
Assinado: Sandra Maria
FINAL
A festinha foi
cancelada. A diretora foi chamada. Nossa colecionadora foi retirada da escola,
levando para casa um bilhete da diretora para seus pais, intimando-os a
comparecer à diretoria. No dia seguinte, a colecionadora de palavras ganhou de
sua mãe um Dicionário. Não houve reprimendas por parte dos pais.
Sandra Castiel: professora escritora
Brava gente brasileira/ Longe vá, temor servil/ Ou ficar a Pátria livre/ Ou morrer pelo Brasil/ Ou ficar a Pátria livre/ Ou morrer pelo Brasil/ !!!!
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