Terça-feira, 16 de setembro de 2025 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Sandra Castiel

Colecionadora de palavras


Colecionadora de palavras - Gente de Opinião

Deixe- me apresentar a você, caro leitor, esta personagem que vive, há décadas, no interior do meu cérebro, e mistura suas memórias às minhas como se tivéssemos intimidade para tanto: não temos. Aliás, somos bem diferentes. Sequer parecemos a mesma pessoa, exceto por um hábito que se tornou uma obsessão: colecionar palavras.

    Refiro-me a uma criança que, durante seu processo de alfabetização, apaixonou-se perdidamente pelos sons das letras, das sílabas e das palavras, claro. A partir de então, passou a acumular bloquinhos, cadernetas e até cadernos, para anotar palavras; sempre considerei isso meio estranho.

    Faziam parte de sua coleção palavras de peso; assim, ostentava seu conhecimento aos coleguinhas da vizinhança e do colégio.

   Quando incluía uma palavra nova em uma frase qualquer, gostava de ver o espanto e a admiração no rosto das pessoas. Deviam pensar: -- Quanta inteligência!

   Com relação ao significado de todos os itens da coleção, confessava a si mesma que não os conhecia: como poderia sabê-los, se tinha só 8 anos?

   Um dia, na saída da escola a caminho de casa, sob o sol escaldante do meio-dia a queimar-lhe a pele, ouviu um curioso diálogo entre duas mulheres que se encontravam paradas no caminho:

— Você já viu a filha da Dora, a que chegou do Rio de Janeiro?

— Aquela que só anda pendurada no pescoço do namorado? Vi, sim. É bonita, mas é uma devassa!

     Ao ouvir tal palavra, nossa personagem ficou impactada: jamais ouvira palavra tão linda! Para não esquecer tanta beleza, acelerou o passo e correu para casa. Assim que chegou, pegou o bloquinho e escreveu na primeira linha, com letra caprichada: 

                de-va-ça  (achou que era assim a ortografia )

   Palavra anotada, tratou de guardar o bloquinho cuidadosamente na pasta do grupo escolar onde estudava. Afinal, aquele bloquinho continha um tesouro— Pensou.

   O sol anunciou um novo dia.

   A mãe, como sempre fazia, acordou a filharada para a escola. Na mesa, o café com leite e pão e a manteiga de sempre; o desjejum básico de toda sua infância. Uma delícia.

   Uniformizada e penteada, nossa personagem se aproxima da porta para sair. Porém, hesitante, faz uma pausa e dirige-se a sua mãe:

Mamãe, hoje é o aniversário da minha professora. Não tenho nenhum presente pra levar.

    Ao que a mãe prontamente respondeu com sua incomparável sabedoria:

Minha filha, queres entregar um presente para tua professora?  Dá um abraço nela e entrega-lhe um cartão escrito por ti. Capricha na letra e escreve quatro ou cinco frases de afeto. As professoras gostam disso.

    Animada, a criança caminha até o grupo escolar. Depois do sinal de entrada, as turmas ocupam as respectivas salas de aula.

     Na turma de nossa personagem, os alunos, um a um, levantam-se para cumprimentar a jovem professora. Ela estava radiante, mais bonita do que nos outros dias; havia bandeirinhas e flores de várias cores, feitas em papel crepom, enfeitando o ambiente e, sobre a mesa, presentinhos embrulhados em papel de presente e em papel de pão. Era uma alegria só!

    Alunos e professoras visitantes das salas vizinhas, estavam sorridentes, agitados, aguardando o grande momento da festa, algo esperado por todos: um belo bolo de chocolate, com vela e tudo, que, na hora certa, seria servido.

    Diante daquela efervescência, nossa colecionadora de palavras caprichou no “cartão” (na verdade, precisou arrancar uma página em branco de seu caderno de desenho, para fazê-lo). Abusou de borboletas, flores e corações. Trabalho feito, assinou seu nome, dobrou o papel e aproximou-se da professora: abraçou-a timidamente e, orgulhosa, entregou-lhe seu presente.

                                      O PRESENTE

   A professora, encantada com tanto carinho, abriu a folha de papel que acabara de receber de uma de suas alunas favoritas. Então, deparou-se com isto:

 

1)    Minha Professora Lurdinha.

2)   Eu gosto da senhora.

3)    A senhora é bonita e se pendura no pescoso do seu namorado.

4)   A senhora é    uma     de-va-ça - devaça

5)  Parabéns pra voce neça data qerida.

         Assinado:  Helena

 

                                            O FINAL

   Ao ler o bilhete, a professora Lurdinha caiu em prantos. A diretora foi chamada. A festinha foi cancelada. Nossa colecionadora foi retirada da escola, levando para casa um bilhete da diretora para seus pais, intimando-os a comparecer à diretoria.

   Claro que os pais foram correndo. Parece que houve uma longa conversa entre os pais, a professora e a diretora. Terminou tudo bem.

   No dia seguinte, a colecionadora de palavras ganhou dos pais um dicionário. Sem reprimendas.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoTerça-feira, 16 de setembro de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Paixão Literária

Paixão Literária

Na juventude, tive uma paixão devastadora por um escritor bastante conhecido no universo das letras. Jamais havia sentido pelos namoradinhos da époc

CONTINHOS MARGINAIS IV - BABA DE MOÇA

CONTINHOS MARGINAIS IV - BABA DE MOÇA

Ele a conhecia de vista. Moravam no mesmo bairro, passavam pelos mesmos lugares, todas as manhãs. Ela há muito estava de olho nele: alto, olhos clar

Literatura: escritores e estilos

Literatura: escritores e estilos

I    “Espero que não a tenha perturbado, madame. A senhora não estava dormindo, estava? Mas acabei de dar o chá para minha patroa, e sobrou uma xíca

Continhos marginais II - O terremoto e as flores

Continhos marginais II - O terremoto e as flores

Empresária e rica, sua casa era uma alegria só: vivia entre filhos jovens, entre amigos e amores (estes, um de cada vez, enquanto durasse a paixão).

Gente de Opinião Terça-feira, 16 de setembro de 2025 | Porto Velho (RO)