Quarta-feira, 20 de novembro de 2024 - 08h05
Quando eu era nova, o tempo não
era um tema que eu considerasse instigante. Para mim bastava pensar que a vida
é o que é, ou seja, tudo se modifica ao longo das experiências de quem vive. Mas
àquela altura eu estava no princípio da minha jornada, focada em planos e
objetivos, não havia vivido o bastante para reflexões filosóficas, o sentimento
que me movia diante das leis da vida era, em outras palavras, manter a inocência
dos ignorantes (sem ter noção desta opção).
JUVENTUDE:
Em nossa casa, meu pai vivia a
repetir uma frase que me marcou pra sempre. Isto acontecia quando recebíamos a
notícia da morte de um conhecido ou amigo, um parente ou pessoa próxima: “- É a Vida! ...-É a Vida!”
Ao repetir esta frase, sua voz
mudava, seu rosto se transfigurava em mágoa, em desolação, em raiva, talvez.
Refugiava-se em sua rede, com seu maço de cigarros e com seus pensamentos. Não
queria conversas. No dia seguinte, voltava aos seus livros de bolso, à leitura das
histórias de faroeste americano, mas evitava até sair do quarto. Não conseguia
ir a velório, tampouco a sepultamento.
Depois de tantos anos, leio o
comportamento de meu pai como o de um homem de meia idade que não aceitava a
ideia e a concretude da morte, da finitude de tudo o que é vivo; isto lhe
causava um profundo sentimento de indignação e, sobretudo, de ressentimento
contra a Vida, contra suas regras, contra a impossibilidade de mudá-las. Ah se
pudesse parar o tempo! ... Afinal, sabia que as leis da vida são eternas e
imutáveis, isto o incomodava profundamente.
Hoje minha leitura da mágoa de
meu pai diante da finitude tornou-se mais clara. Estar vivo, para ele,
significava contemplar e interagir com a natureza, com a simplicidade das
cidades minúsculas às margens dos caudalosos rios amazônicos, e com suas filhas,
esses eram seu tesouro.
Costumava inventar histórias
sobre a floresta e contá-las com uma interpretação incrível, para as filhas
crianças. Os personagens das histórias pertenciam sempre a esse universo,
inclusive ele próprio. Creio que encarava a morte como uma “sentença” de privação
injusta do que lhe era mais caro, privação eterna imposta pelas leis do
universo.
INFÂNCIA:
“Uma
choupana à beira do rio Amazonas, chão de terra batida, teto de palha, no meio da
floresta. Um dia, meu pai e seu amigo, cansados de caminhar naquela mata,
avistaram a choupana e chegaram até ela. Foram bem recebidos pelo dono da
casinha onde passariam a noite; este era um senhor de certa idade, que ali
morava com sua filha, Jara, garotinha de 6 anos de idade, descrita como uma caboclinha
de aparência frágil, magrinha e de cabelos longos. A história de Jara era
triste, sua mãe havia morrido por uma picada da terrível cobra pico-de-jaca.
Todos
ataram suas redes no único cômodo que havia. Meu pai só conseguiu cochilar de
madrugada. Acordou quando ouviu o seguinte diálogo:
-Jara!
-
Siô, meu pai!
-Si
alevanta, minina!
-Já
vô, meu pai!
-Vai
perpará um café pru meu cumpade Rafaé e pru amigo dele!
Na
penumbra do barraco, à luz de uma antiga lamparina, a menina levantou da rede,
pegou uma panela velha pendurada em um prego na parede e saiu, descalça, os
longos cabelos lisos desgrenhados, em direção ao rio. O dia ainda não havia
nascido completamente, quando Jara desceu o barranco, acocorou-se bem à beira, e
mergulhou a panela nas água do gigantesco Amazonas.
Eis
que um jacaré enorme, nascido e criado naquelas águas barrentas, aproximou-se
silenciosamente... (ainda não havia comido nada àquele dia), abriu sua bocarra
cheia de dentes pontiagudos e, com um movimento que fez as águas tremerem,
atacou a pequena Jara. Da choupana, todos ouviram o grito desesperado da
menina.
- Meu pai! Me ajuda, meu pai!
Ao
sentir que a filha estava em perigo, o velho pai de Jara teve um passamento
(como se falava à época nesta região) e foi amparado pelo amigo de meu pai. Naquele
momento, meu pai correu até o rio com sua espingarda, mirou bem e apertou com
força o gatilho.
O
tiro certeiro ecoou na mata como uma explosão, espantando os pássaros, que
voaram em bandos pra longe: BUM!!!!!!!!
As
águas do rio ficaram vermelha do sangue do jacaré, que ainda mantinha a menina
presa em sua enorme boca. Os cabelos negros de Jara boiavam sobre as águas
iluminadas pelos primeiros raios de sol. Os três homens arrastaram o bicho pra fora d´agua
e com cuidado retiraram a pobre menina. Ela não se mexia, não respirava. Jara
estava morta!”
Esta história, uma das muitas inventadas
por meu pai para encantar a imaginação das filhas, vem-me à memória como a mais
linda lembrança de minha infância (apesar de Jara ter morrido no final; acho
que a psicologia explica essa morte). É difícil ter que aceitar que aquele
tempo está morto, é inútil revisitar lugares para tentar reencontrá-lo,
voltando presencialmente aos cenários do passado; nada mais é igual, nem cenários
e nem personagens. O tempo leva tudo, como dizia Rubem Braga. Não volte ao
passado buscando encontrá-lo, guarde consigo as memórias.
No fundo acredito que o tempo
seja linear, isto é apenas uma intuição, não sou filósofa. Gosto de pensar
sobre o tempo e imaginar como estará o mundo daqui a cinquenta anos. Algo me
diz que já terão inventado uma máquina do
tempo, espécie de nave que nos possibilite visitar de verdade o passado, já
pensou?!
Uma pena eu não estar mais aqui daqui a cinquenta anos: o tempo já terá aberto sua bocarra cheia de dentes afiados e ... É a Vida!
Professora, escritora, membro da Academia de
Letras de Rondônia
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