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Supersalários: triunfo da voz das ruas


A sociedade brasileira vinha dando sinais de cansaço diante das bandalheiras em Brasília. Pouco ou nada reagiu quando o último mensaleiro foi absolvido, o deputado José Janene, acusado de sacar mais de 4 milhões de reais do valerioduto. Quase nada fez diante da absolvição dos primeiros sanguessugas julgados no Senado. Na semana passada, no entanto, os deputados e senadores, ao se autoconcederem um aumento salarial de 91%, conseguiram fazer com que uma parte dos brasileiros voltasse a reagir e, com manifestações de pequeno porte mas eficazes, acabasse colhendo uma vitória sonora. Houve manifestação em Brasília, reunindo estudantes, sindicalistas e mulheres de militares. Houve protestos em São Paulo, com 100 pessoas fazendo uma passeata no centro da cidade. Em Curitiba, um grupo de cinqüenta estudantes vaiou a diplomação dos deputados. No Rio de Janeiro, o asfalto do Leblon amanheceu pichado com palavras de repúdio ao aumento. Nada grandioso, tudo meio errático, mas o resultado é saudável: o aumento de 91% pode até vir a sair, mas, neste ano, nem pensar.

O triunfo da sociedade sobre o desatino dos políticos começou na terça-feira, quando o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, decidiu que o aumento salarial tinha de ser votado em plenário. Assim, o aumento, que fora aprovado por apenas 26 deputados e senadores numa reunião realizada na semana anterior, estava anulado. O assunto tinha de ir a plenário e aí a voz das ruas começou a surtir seu efeito. Alguns dos que haviam aprovado antes o aumento de 91%, que elevaria seus salários para 24.500 reais, recuaram. Outros defendiam que o aumento fosse de 28%, o que corresponde à inflação dos últimos quatro anos e elevaria os salários para 16.500 reais. Houve quem defendesse manter os salários nos atuais 12.800 reais, sem aumento algum. Com tantas propostas diferentes, nenhuma foi a plenário. O Congresso, sob pressão, deixou o assunto para a nova legislatura, que toma posse em fevereiro do ano que vem. "Foi um tapa na cara dessa casta de parlamentares que acreditam poder tudo", comemorou o deputado Fernando Gabeira, do PV do Rio, integrante do grupo que pediu ao Supremo Tribunal Federal que barrasse o aumento.

O presidente da Câmara e candidato à reeleição, Aldo Rebelo, foi obrigado a receber o tapa em público. "Não vejo problema em reconhecer erros. O problema é quando você erra e persiste no erro", disse. Houve protestos exóticos, como o do aposentado William Carvalho, cientista político, que se acorrentou a uma pilastra do Senado em frente ao gabinete de Renan Calheiros, um dos artífices do superaumento. Em Salvador, numa reação condenável, uma eleitora agrediu a faca o deputado ACM Neto, que levou três pontos nas costas. Muitos eleitores protestaram pela internet, entupindo as caixas de e-mail dos parlamentares com textos de repúdio à decisão. Houve, também, os protestos de entidades. A Ordem dos Advogados do Brasil disse que o aumento era "imoral". A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil pediu que os padres condenassem o aumento nas missas. Na quarta-feira, o arcebispo de Brasília, dom João Braz de Aviz, ao rezar a missa para uma platéia com parlamentares, passou-lhes um sermão. "Como aceitar que um parlamentar brasileiro receba mais de 800 reais por dia quando uma boa parte das pessoas que representa é obrigada a viver com 12 reais por dia?", indagou.

A sociedade, mesmo quando se mobiliza, nem sempre conquista o recuo das autoridades, mas exemplos recentes mostram que as mobilizações populares surtem efeito de vez em quando (veja quadro). É assim que funcionam as democracias mais avançadas, onde é comum a opinião pública pressionar os governantes. Em abril passado, por exemplo, o primeiro-ministro francês, Dominique de Villepin, diante das manifestações dos estudantes que se espalharam pelo país, acabou forçado a revogar uma medida que permitia ao empregador demitir jovens sem justa causa durante os dois primeiros anos de trabalho. Em junho passado, em outro exemplo, o presidente George W. Bush enviou ao Congresso americano uma emenda constitucional que previa a proibição do casamento entre homossexuais. Como os republicanos compunham a maioria parlamentar, parecia fácil. Mas os movimentos de defesa dos direitos civis reagiram, chiaram e a tal maioria republicana ruiu e a proposta foi derrubada. Nesse ambiente de confronto pacífico entre sociedade e governo, o jogo de pressão apenas reforça o vigor do regime democrático.

O caso do aumento dos parlamentares brasileiros, no entanto, chama atenção pelo profundo desequilíbrio entre a sociedade e o Congresso. Eles realmente acreditaram que o aumento passaria em branco? Eles, de fato, imaginaram que a sociedade toleraria uma medida assim tão acintosa? "O caso do aumento salarial e o das absolvições em massa mostram que o divórcio entre a opinião pública e o Congresso pode estar chegando a um ponto crítico", analisa o sociólogo Luiz Werneck Vianna, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Uma das razões para isso pode ser a própria ausência do PT no campo da oposição. "Demagogicamente ou não, o PT se comportava como a consciência crítica do Congresso e funcionava como anteparo para as bandalheiras que sempre se promoveram no Parlamento", afirma o cientista político Octaciano Nogueira, da UnB. "Sem ter o PT como partido disposto a fazer política de forma decente, o Congresso nivelou-se por baixo. Infelizmente, agora vale tudo."

O vale-tudo inclui, naturalmente, a busca obstinada por sucessivas regalias como demonstra o caso dos aumentos salariais. Essas excessivas sinecuras, por sua vez, contribuem ainda mais para distanciar os eleitores do Parlamento. "A maioria dos deputados recebe sem trabalhar e não pára de acumular vantagens. Eles se consideram exteriores, se percebem quase como uma casta", diz o filósofo Roberto Romano, da Universidade Estadual de Campinas. "Como o brasileiro médio, que mal ganha o suficiente para se sustentar, pode imaginar ou compreender esse mundo de fantasia?" O efeito mais nefasto desse distanciamento é a apatia política que costuma causar nos cidadãos o que, evidentemente, não é um problema exclusivo do Brasil. Essa conseqüência perversa já era apontada no século XVIII pelo filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, na obra seminal O Contrato Social. Nas palavras de Rousseau: "Quando alguém diz, referindo-se aos negócios do Estado: que me importa?, pode-se ter certeza de que o Estado está perdido". Na semana passada, a sociedade brasileira mostrou que, por enquanto, nem tudo está perdido. (A matéria foi publicada na revista Veja) 

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