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Produtividade tóxica: quando o "fazer mais" nos desconecta de nós mesmos*


Lisia Prado - Gente de Opinião
Lisia Prado

Vivemos em uma era em que “ser produtivo” virou quase uma identidade. A cultura do desempenho invadiu nossas rotinas e, muitas vezes, nossa autoestima. Trabalhar até tarde, estar sempre disponível e entregar cada vez mais virou sinônimo de comprometimento. Mas a que custo?

Essa busca constante por performance tem gerado um fenômeno silencioso e cada vez mais presente: a produtividade tóxica — um estado em que a necessidade de produzir deixa de estar a serviço da realização e passa a alimentar o medo, a comparação e a desconexão de si. A produtividade tóxica nos prende a um estado de reatividade constante. Isso impede que a gente pare para refletir, escolher com intenção e agir a partir dos nossos valores. Vivemos no piloto automático.

Direto do SXSW: um alerta necessário

Recentemente, estive no SXSW 2025, em Austin (Texas), e assisti à palestra “Breaking the Cycle of Toxic Productivity”, ministrada por Israa Nasir, psicoterapeuta e autora especializada em saúde mental moderna. Sua abordagem foi poderosa, tanto pela linguagem acessível quanto pela profundidade.

Israa explicou que muitas pessoas não sofrem por falta de produtividade, e sim por sentirem que nunca são suficientes, mesmo produzindo demais. Esse sentimento crônico de inadequação tem raízes em pressões sociais, narrativas de sucesso importadas (e idealizadas), emoções não resolvidas como culpa e vergonha — e, principalmente, na desconexão com nossos próprios valores.

O retrato do esgotamento

Os dados confirmam o que muitos já sentem no corpo e na mente:

● Segundo o Work Trend Index da Microsoft (2023), 44% dos trabalhadores brasileiros relataram sentir exaustão decorrente do excesso de reuniões, notificações constantes e sobrecarga mental — um número acima da média global.

● A OMS e a OIT alertaram, em relatório de 2021, que longas jornadas de trabalho causam 745 mil mortes anuais por AVC ou doenças cardíacas.

●A plataforma Pulses apontou que apenas 3,6% dos profissionais nunca vivenciaram comportamentos tóxicos vindos de lideranças. Ou seja, a maioria já foi exposta a pressões que afetam diretamente a saúde emocional e a produtividade real.

Esses números mostram que estamos fazendo mais, mas vivendo menos — uma conta que não fecha no longo prazo.

Maya: o exemplo que espelha milhões

Durante a palestra, Israa citou a história de Maya — uma personagem fictícia baseada em relatos reais. Com 34 anos, bem-sucedida e produtiva, Maya sentia-se constantemente frustrada por não ter atingido certos marcos sociais: casamento, filhos e uma grande promoção. Apesar das conquistas, sua sensação era de fracasso.

Foi só ao revisitar seus valores autênticos — liberdade, criatividade, conexão — que ela percebeu que estava vivendo sob expectativas externas. Sua rotina era produtiva, mas desalinhada com quem ela realmente era.

Da produtividade à intenção: o Método Aliança

● Israa propõe, em seu livro, o Método Aliança, uma estratégia prática e profunda para reconectar produtividade e propósito de vida. O método é formado por quatro pilares fundamentais:

● Avaliar compromissos: O que realmente merece meu tempo e energia?

● Estabelecer limites: Até onde estou agindo por mim — ou para atender expectativas alheias? Parte da produtividade tóxica vem da urgência alheia, que absorvemos sem filtrar. Isso acontece muito no ambiente corporativo, onde confundimos agilidade com disponibilidade total. Isso corrói limites pessoais. Muitas vezes os limites são atravessados não por maldade, mas por padrões culturais de hiperdisponibilidade.

● Atuar com intenção: Esta tarefa está conectada com meus valores ou é apenas uma resposta automática?

● Criar espaço livre: Momentos sem estímulos são essenciais para o cérebro descansar, integrar e criar. O ócio não é só descanso, mas uma chance de interromper a reatividade.

Faço aqui uma reflexão extra: o impacto silencioso das relações desalinhadas

Ainda que não faça parte dos pilares descritos no livro, acredito que vale ampliar a reflexão. A produtividade tóxica nem sempre vem só da carga de trabalho ou da pressão externa — muitas vezes, ela nasce das relações que mantemos. O cansaço também vem das interações que nos afastam dos nossos valores. Conviver com ambientes ou pessoas que reforçam checklists externos, que alimentam padrões de comparação ou invalidam nossas escolhas, desgasta. É um sintoma invisível, mas real.

Revisar com quem dividimos nosso tempo e onde investimos nossa energia emocional é parte fundamental do processo de desacelerar com consciência. Relações desalinhadas também nos colocam no piloto automático — às vezes, até mais do que a agenda cheia.

Comece pequeno — mas comece

Romper com a produtividade tóxica não exige uma revolução. Muitas vezes, basta um pequeno gesto para iniciar o realinhamento:

● Fazer uma caminhada sem o celular;

● Recusar um convite sem culpa;

● Perguntar a si mesmo: “O que eu preciso agora?” — e, mais importante, honrar essa resposta.

Use seus valores como bússola. Eles não são apenas palavras bonitas como “família”, “sucesso” ou “carreira”, mas formas concretas de viver. Um valor como cuidado, por exemplo, se manifesta em como você trata sua família, amigos, colegas — e até desconhecidos.

Evite cair na armadilha de acreditar que precisa mudar tudo de uma vez. A transformação verdadeira costuma vir dos pequenos ajustes diários. É nesses realinhamentos discretos que mora o poder de retomar o controle e viver com mais intenção.

Trocar a pressão pelo propósito é um caminho possível. Em um mundo que valoriza tanto o fazer, lembrar-se de simplesmente ser pode ser o ato mais radical de produtividade genuína.

Romper com a produtividade tóxica é mais do que desacelerar — é sair do modo reativo, onde tudo parece urgente, e escolher viver com intenção. Isso exige coragem para revisar nossos compromissos, repensar com quem dividimos nosso tempo e reconhecer que não precisamos romper com tudo para fazer diferente. Às vezes, dizer “não” a uma urgência que nem é nossa já é um grande começo. Em um mundo que nos empurra para o próximo passo, parar para se perguntar “isso tem a ver comigo?” pode ser o ato mais profundo de autocuidado.

*Lisia Prado é sócia da House of Feelings, primeira escola de sentimentos do mundo. Mais informações no site.

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