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A Prestação Jurisdicional e o Poder de Polícia: A precípua função do Poder Judiciário


A Prestação Jurisdicional e o Poder de Polícia: A precípua função do Poder Judiciário - Gente de Opinião

Rossevelt Queiroz Costa*

Há algum tempo tem-se aberto um debate na sociedade sobre as possíveis informações veiculadas em redes sociais ou até mesmo em empresas de comunicação que, ou pela necessidade de promover “furos” jornalísticos ou por deficiência técnica, divulgam matérias e informações sem a devida pesquisa e apuração real dos fatos.

Recentemente surpreendeu-me a notícia de que determinado site jornalístico haveria produzido matéria, de cunho denunciativo, divulgando uma suposta ilegalidade no desempenho de servidores deste Poder Judiciário, qual seja, que os antigos comissários de menores estariam desenvolvendo suas atividades em locais alheios as suas atribuições, em evidente desvio de função, além de que este Poder estaria se afastando de suas responsabilidades constitucionais. Nada mais desconectado da realidade jurídica e fática deste Tribunal e destes servidores.

Na verdade, durante minha Presidência na Corte de Justiça deste Estado (2012/2013), atento a nova legislação de pessoal (Lei Complementar n. 568/2010) e ao Estatuto da Criança e da Adolescência, promovi as adaptações e melhorias necessárias para a adequação de alguns cargos a nova demanda instaurada pelo diploma de proteção dos infantes.

Inclusive, na oportunidade, em pronunciamento no evento comemorativo aos 22 anos da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, que antes mesmo de chegar a esta Capital já havia me deparado com os problemas relacionados às crianças e jovens, os quais eram recorrentes, demandando atenção redobrada e dedicação para solucionar estas questões. Naquela ocasião participei junto à abnegados servidores do alvissareiro projeto “Conhecer para Defender”, o qual prestou-se a ser paradigma para outros Tribunais e para o próprio Conselho Nacional de Justiça.

Para mim, o que intuitivamente já entendia como correto, tornou-se firme convicção quando da vivência prática demonstrou-se que o trabalho feito pela Justiça na área da infância e da juventude é primordial para que a sociedade entenda o valor da educação e dos cuidados devem ter com as crianças e adolescentes, ajudando-os a reparar os erros ainda na fase de desenvolvimento. Tendo este pensamento, pude, durante minha Presidência, cooperar para melhora do serviço jurisdicional nesta área e colocar em prática as novas diretrizes trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Ocorre que com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) houve uma significativa mudança entre o que o antigo Código de Menores (Lei n. 6.697/79) e o atual ECA (Lei n. 8.069/90) estabelecem quanto à competência do Poder Judiciário. O revogado Código de Menores atribuía à autoridade judiciária a competência para editar normas gerais para a assistência, proteção e vigilância do menor (art. 8º), mas no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 149), este domínio foi diminuído, restringindo-o à portarias que devendo ser determinadas caso a caso, vedando as de caráter geral. Assim, preservou-se a competência do Poder Legislativo em editar normas gerais e liberou os juízes a atividades não afetas à função jurisdicional, delegando-se estas atribuições a novos atores, como o Ministério Público, Conselhos Tutelares de Direitos, Ministério da Justiça, Poderes Executivo, sociedade civil, pais, etc.

Deste modo, é cediço que desde a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente não mais subsiste a atribuição ao Poder Judiciário de promover e executar ações diretas de controle em sobreposição ás atribuições definidas ao Conselho Tutelar, órgão da própria comunidade local, com atribuição primária de adotar medidas de proteção à criança e ao adolescente (art. 98 c/c arts. 131 a 136).

Há que se ressaltar que, ainda que o ECA preveja a possibilidade de elaboração de auto de infração por “servidor efetivo” ou “voluntário credenciado” como início de procedimento de apuração para a imposição de penalidade administrativa, esta atividade é supletiva e não decorre de determinações gerais (portarias) que habilitavam os antigos comissários efetivos e voluntários a ingressar indiscriminadamente em qualquer estabelecimento a título de exercício de poder de polícia.

Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente em sua formulação, assentou que as ações possíveis de serem realizadas pelos servidores auxiliares da justiça da infância e juventude são direcionadas ao assessoramento ao juízo na perspectiva de proteção específica e não da estruturação de aparato operacional destinado a fiscalização externa e geral, ou seja, exercício de poder de polícia geral.

Com estas diretrizes em mente, verificou-se que, se o novo Estatuto reforçava ainda mais a função jurisdicional do Poder Judiciário como um todo, não seria razoável que os demais agentes públicos pertencentes deste Poder permanecessem exercendo atividades alheias aos contornos traçados no ECA.

A par disso, e ainda para dirimir as disfunções salariais e de níveis entre carreiras de meio e fim no Poder Judiciário deste Estado, editou-se a Lei Complementar n. 568/2010, na qual a carreira judiciária restou constituída por apenas dois cargos de provimento efetivo: Técnico Judiciário (nível médio) e Analista Judiciário (nível superior). Frise-se que o cargo de Técnico Judiciário, à exceção daqueles em extinção, não apresenta-se com especialidades, justamente para garantir a todos os servidores o mesmo desenvolvimento e o exercício de atividades condizentes com o local de lotação.

Por inexistir direito adquirido à regime jurídico, e buscando promover a adequação dos cargos anteriores ao ECA a esta nova realidade, reenquadrou-se com o novo Estatuto dos Servidores do Poder Judiciário de Rondônia, o cargo de auxiliar operacional, nível médio, especialidade Comissário de Menores, como Técnico Judiciário, passando este a exercer atividades tipicas de técnico condizentes com seu local de lotação.

Dessa maneira, é leviano traduzir o reenquadramento dos antigos Comissários de Menores como desvio de função, pois além de ser um erro crasso jurídico é representação falaciosa da realidade.

O que temos hoje em nosso Tribunal são servidores ocupantes de cargo de nível médio, que reenquadrados por uma Lei, a qual buscava maior justiça no desenvolvimento das carreiras judiciárias e adequação as novas normas jurídicas (ECA), agora desempenham as atribuições inerentes ao seu cargo, em locais condizentes com suas novas atividades. Vejam, após a Lei Complementar n. 568/2010 não há que se falar mais em Comissários de Menores, mas em Técnicos Judiciários, pois estes servidores foram reenquadrados neste cargo. Constitui-se, assim, verdadeira imprecisão técnica qualquer argumento que possa insinuar um possível desvio de função destes servidores.

De fato, embora seja patente a necessidade de fiscalização da comunidade quanto ao cumprimento efetivo do Estatuto da Criança e do Adolescente, não se insere esta dentre as atividades típicas desta instituição, já que estaria no âmbito de atribuição do conselho tutelar e até das delegacias de polícia, e mesmo dos órgãos assistenciais municipais/estaduais e da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente.

Por outro lado, é forçoso assinalar que na perspectiva de política de responsabilidade deste Tribunal de Justiça são reconhecidos e incentivados projetos e ações desenvolvidas pelos magistrados e servidores relacionados à sensibilização e conscientização social na área da infância e juventude. Nada obstante, seria temerário que este Tribunal incentivasse ou admitisse atribuições de funções ou ações passíveis de envolver confronto direto e com potencial risco para os servidores públicos deste Poder, ou que de alguma forma, ante a ausência de qualificação técnica para o trato das situações familiares e sociais dos infantes e adolescentes, estes fossem submetidos a uma prestação de serviço público equivocado.

Por esta razão, a surpresa ao ver noticiada matéria com imprecisões técnicas e distanciada da realidade, a qual pode induzir o cidadão a uma imagem pejorativa e distorcida do papel do Judiciário para a sociedade e instigar a coletividade a um estado de indignação contra os servidores deste Poder que de modo irrepreensível vem cumprindo suas atribuições e cooperando para uma prestação jurisdicional efetiva, justa e transparente, não podendo se imiscuir em atribuições de fiscalizar ambientes como motéis, espetáculos e outros. Isso é poder de polícia, de outros órgãos não do Judiciário.

*O autor é Desembargador e ex-presidente do Tribunal de Justiça de Rondônia.

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