Domingo, 9 de março de 2014 - 20h08
O país ou, ao menos, os que têm um pouco de respeito ao ser humano se sentem indignados com as manifestações de racismo por toda parte. Chama mais a atenção a agressão dirigida a jogadores e árbitros de futebol, todos negros, porque são naturalmente mais expostos à ação da mídia televisiva. Mas, o racismo é global e sistêmico no Brasil e, como todos os crimes, preconceitos e discriminações são abomináveis e devem ser rigidamente corrigidos. O racismo tem muitas raízes e motivações; no Brasil há singularidades, como vemos na figura de Macunaíma de Mario de Andrade. O romance pode ser lido sob muitos vieses, porém, uma abordagem possível é aquela que relaciona miscigenação com sincretismo. Afinal, mesmo não sendo negros, todos nós temos muito de Macunaíma em nossas vidas.
Ninguém é branco, negro, vermelho ou amarelo no Brasil. Se tivéssemos frequentado a escola com um pouco mais de vontade e fazendo uso medianamente da inteligência ao estudar a história da cultura brasileira, veríamos que sempre fomos Macunaíma. Quem pode dizer com segurança se Macunaíma é bom ou mau, feio ou belo, fez o que deveria fazer ou não se tornou quem deveria ser? Impossível saber, mas é o retrato de nossa miscigenação física e moral. No coração (cordis) do Macunaíma o real migrou para o virtual, para a representação, imaginação, reinvenção e reinstalação de nosso corpo e cultura. Para a direita fascista, um ator como Grande Otelo[1], sendo expurgado do interior da própria mãe, é o retrato da miséria humana. Álibi ariano. Para a esquerda, é o novo que procura por si, é o povo que se mostra para a realidade. No reino de Macunaíma, o espaço público, como espaço vazio no país dos sem-nada, não é fácil de encontrar. E sem destino prefigurado, parece que sempre voltamos ao ponto de partida. Pois, não fugimos de nossa deficiência.
Não há deficiência na cor da pele, mas na moral (cordis) do racista. O racista é um aloprado com sua cultura. Neste sentido, tanto "Macunaíma" como o "homem cordial" (o que usa o cordis para se defender da violência social) pertencem à mesma "estirpe". Podem ser fórmulas mágicas de exorcismo e sublimação, por meio das quais se decantam séculos de escravismo, castas e alienação.
É claro que o "homem cordial", "Macunaíma", "Pedro Malazarte" e "Jeca Tatu", lembrando a "preguiça" e a "luxúria", levam consigo várias e notáveis significações, participando da composição e movimentação do imaginário da sociedade e dos seus diferentes setores sociais, em diferentes modulações. Mas também é possível reconhecer que pode haver algum parentesco entre o "homem cordial" e "Macunaíma", entre outros, lembrando nossa incapacidade cultural de prefigurar uma “identidade cultural". Ainda hoje nos satanizamos enquanto figuras e figurações com as quais também se diabolizam valores, ideais e modos de ser que floresceram nas cercanias da casa grande. Mais ou menos longe das senzalas, ainda não temos projeto nacional.
Nesta cultura sem-eira, nem-beira, é que floresce o racismo; é como se o homem branco copiasse Grande Otelo, mas na verdade é o homem branco saindo (ou tentando sair) de dentro de seu Macunaíma interior. O racista é um Grande Otelo às avessas. É um homem impregnado de fraquezas, impurezas e impotente para se livrar de si mesmo. O Racista é um branco que se detesta, porque sabe que é Macunaíma e não tem força moral para conseguir ser um humano diferente. O racista gostaria de tirar sua própria pele (a cultura é uma segunda pele), mas como não pode tenta esfolar o(a) Outro(a). O racista é um indivíduo alucinado com sua miséria humana.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia – UFRO, junto ao Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ. Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais e Doutor pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Ciências e em Direito. Jornalista.
[1]Especialmente no filme.
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