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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Para fechar 2012


2012 foi um ano bárbaro e só poderia terminar assim. Tomara que em 2013 tenhamos um pouco mais de sabedoria. Em todo caso, há duas histórias próximas e semelhantes que me chocaram em dezembro. Uma no Brasil e outra na Índia, comecemos por esta.

O regime de classes sociais nós mais ou menos conhecemos no Brasil, digo mais ou menos porque temos tantos desvios sociais que a interpretação da realidade social, por muitos, acaba sufocada pela desinformação e escapismos, deterioração das próprias relações sociais ou mentiras que acreditamos como ideologias.

Há um Brasil para adultos, educados, politizados, críticos, engajados, adeptos da democracia, da isonomia, da autonomia, que reconhecem o poder prático do esclarecimento (Aufklärung), conscientes de que podem ser diferenciais quando conhecem e dominam a realidade (“ouse saber”). Contudo, também temos um brasil, minúsculo, feito de conto de fadas, para inglês e crianças verem, em que se aplica a lógica doméstica do perdão ao crime praticado, quando vigora a privatização do público e o desconhecimento do Estado de Direito, porque a República é serva das elites e das classes econômicas dominantes.

            O regime de castas tem um bom exemplo na Índia, que voltou à cena por causa do estupro coletivo de uma jovem estudante de medicina, de 23 anos, e que morreu depois de ser espancada, empalada com uma barra de ferro e atirada de um ônibus em movimento.

Para fechar 2012 - Gente de Opinião
Milhares de Indianos protestam contra estupro coletivo

 

O regime de castas é caracterizado pela não-mobilidade social imposta pelas tradições, pela impossibilidade de as pessoas mudarem, alterarem sua sorte social: nascido filho de sapateiro, deve ser aprendiz de sapateiro – no máximo um artesão de gênero semelhante, preso à ascendência social horizontal. Hoje, a Constituição Federal indiana proíbe a discriminação imposta pelo regime de castas, mas seu Estado laico nada ou pouco faz para impedir a predominância dessas tradições machistas, racistas.

No país, não são raros os casos de aborto de fetos femininos, assim como os de assassinato de meninas recém-nascidas. A prática levou a um assombroso desequilíbrio numérico entre gêneros no país. De acordo com os cálculos dos economistas Siwan Anderson e Debraj Ray, mais de dois milhões de indianas morrem a cada ano: cerca de 12% ao nascer, 25% na infância, 18% em idade reprodutiva e 45% já adultas. Outro dado estarrecedor é o de 100 mil mulheres mortas por queimaduras. Segundo os dois economistas, boa parte delas são vítimas de violência relacionada ao pagamento de dotes matrimoniais. Não raro, os agressores queimam as mulheres.[1]

 

Na África do Sul, até os anos 1990, prevalecia o apartheid social, um regime de brutal segregação e de anulação dos negros. Neste regime racista, é óbvio, os negros também não conheciam a ascensão social. Alegava-se, ideologicamente, cinicamente, que o regime era para o seu próprio bem, como se o Mal proposital pudesse gerar algo distinto. Como a negação de direitos básicos poderia garantir direitos? Só mesmo com muita hipocrisia: na Índia a vaca é sagrada, mas a mulher não. Diferentemente, na Índia, a segregação é marcada pelo gênero, discriminando-se sexualmente, e pela ordem social, pois os pobres são realmente muito pobres, miseráveis, e os ricos, riquíssimos – já fomos bem parecidos. Porém, apesar de não ser legal, ainda há Marajás na Índia que habitam palácios (de 100 mil m2) comparedes folheadas a ouro (e com mais de 300 quartos). No Brasil, o coronelismo é atuante, bem como a indústria da seca, daqueles que lucram com a morte na caatinga.

Contudo, a Índia é um espécime letal da sociedade patriarcal, em que vigora um tipo de pátrio poder, como poder de vida e de morte sobre os dependentes (sejam filhos ou não) e esse poder máximo impede que as mulheres se queixem ou se defendam adequadamente. Isto revela porque os estupros coletivos são rotineiros no país, um tipo de praga cultural, como se as mulheres fossem objetos comestíveis e descartáveis e o pior é que elas não denunciam porque têm medo da corrupção do Judiciário e da polícia – especialmente se forem de “castas inferiores”.

Não que o Brasil também não seja outro espécime desse tipo nefasto de poder cultural. No Brasil, uma mulher é agredida a cada cinco minutos e há um assassinato de mulher a cada duas horas.

Para investigar a morte da estudante de direito da PUC-SP que no início do mês caiu do sétimo andar do prédio onde morava, no Real Parque (zona oeste), a polícia apreendeu o celular dela, um notebook e anotações encontradas em seu quarto. Segundo o depoimento da mãe à polícia, a jovem começou a apresentar sinais de descontrole emocional dois dias após o evento, quando disse que o colega com quem dividiu o táxi contou na empresa que teve relações sexuais com ela. Viviane, então, foi levada para um hospital e chegou a ser medicada[2].

 

No Brasil, os crimes de homicídio doloso, aqueles com premeditação e de clara intenção de matar, abatem cinco jovens negros para cada dois brancos, isto é, duas e vezes e meia mais negros são assassinados em relações sociais nitidamente de violência social.

Certamente, o racismo e o machismo nacional não exemplificam uma sociedade democrática, equilibrada; ao contrário, a antinomia escapa totalmente ao que o sociólogo francês Emile Durkheim definiu como nível normal, aceitável da anomia social. Quer dizer que o crime social passou da linha tênue do suportável.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia

Departamento de Ciências Jurídicas

Doutor pela Universidade de São Paulo

 


[2]http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1208425-policia-apreende-laptop-de-estagiaria-morta-apos-suposto-estupro.shtml

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