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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O fascismo de cada dia


            Diz o ditado popular: “a cada dia o seu próprio mal”. Com relação ao fascismo não é bem assim, pois todo dia alguns de seus efeitos nos incomodam ou ameaçam. Vou contar uma história e aí você me diz se concorda ou não.

            Em 2009, depois do concurso e antes da posse, na UNIR, recebi um convite para ser professor 40 horas em uma instituição de ensino superior, no interior do Estado. Como estava na véspera de assumir o cargo, aceitei a proposta – seria uma forma de me ambientar.

            Como ainda estava em São Paulo, tudo foi tratado por e-mail e longas conversas no antigo MSN. Tinha tudo acertado, definidas as disciplinas e demais atividades. Tinha um e-mail do coordenador daquela escola me parabenizando e dizendo, com todas as letras, que já fazia parte do quadro docente. Note-se: o sujeito era coordenador de um curso de direito e a professora que fez os contatos, idem.

            Foi quando o fascismo de cada dia começou a me rondar. Em um belo dia, esta professora, intermediária na conversa, iniciou um bate-papo bastante torto no MSN. Perguntou-me se era deficiente, se tinha dificuldades para subir dois lances de escada etc. Respondi que até um poderia subir, apesar de me incomodar.

            No dia seguinte a esta infame acareação fascista, recebi um e-mail do suposto coordenador com minha demissão, antes mesmo de ter assumido as aulas. Sua alegação estapafúrdia era de que o vestibular tinha sido muito fraco e não tinha formado turma. Antes mesmo de ter recebido sua mensagem, porque tinha achado muito estranha a conversa da “professora” no MSN, já tinha tudo gravado e impresso. Além dos e-mails.

            À época, conhecia uma pessoa nesta cidade, sem nem imaginar onde ficava, que fez uma série de fotos das salas de aula, especialmente do primeiro período, e estavam bem cheias. Depois, entrei no site da escola e gravei mensagens dos provedores congratulando o sucesso dos vestibulares. Por fim, um ex-aluno conseguiu, remotamente, copiar a lista de todos os alunos matriculados naquele ano na escola.

            Ou seja, tinha todas as provas necessárias para ingressar com ação trabalhista, mais a indenização moral. A alegação, óbvia, é de que fui demitido por preconceito e discriminação profissional em razão da condição física de pessoa com necessidade especial. No século XXI, em faculdade de direito, esse tipo de barbaridade ainda ocorreria.

            Como vinha para cá, não quis começar com conflito e também porque, a professora fascista, implorou a outro intermediário para que não ajuizasse a ação. Ela mesma seria demitida pela estupidez cometida. Hoje, não tenho mais as provas e por isso não declino os nomes dos envolvidos, mas o que me atormentou essa semana é que terei de conviver com este fascismo por mais algum tempo.

            A você leitor, convido-o para que leia o pensamento de um grande escritor italiano, Umberto Eco, para ver como é nefasto, ardiloso, mafioso, o ranço fascista de cada dia:

1. Aprimeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e verdade primitiva. Como conseqüência, não pode existir avanço do saber.

2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O iluminismo, a Idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como irracionalismo.

3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão.

4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. Para o Ur-Fascismo, a crítica e o desacordo são traições.

5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade cultural. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição.

6. Uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas.

7. Na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô. Os seguidores têm que se sentir sitiados e o modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia.

8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo – com isso, porém, revelam-se incapazes de avaliar a força do inimigo.

9. Não há luta pela vida, mas antes vida para a luta. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente.

10. Há um elitismo popular, populista, que faz as massas sonharem com o poder.

11. Nessa perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Esse culto do heroísmo está estreitamente ligado ao culto da morte, não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte”. (Eco, 1998, p 43 e ss.) [1].

 

            O leitor pode me perguntar se escrevo a coluna motivado por mágoa, rancor. Digo-lhe que não, que escrevo para combater o fascismo, pois tal qual escreveria denunciando o racismo (um professor demitido por ser negro), escrevo denunciando o fascismo que há na injustiça, no preconceito e na discriminação (um professor demitido pela gordura mórbida).

            Como disse, não escrevo em causa própria, até porque se assim o fosse, seria em ação judicial – e bem remunerada. Então, você me perguntaria porque não a perdoo – é simples, porque a professora fascista nunca pediu desculpas, isto é, ela nunca se arrependeu do que fez. Em sua cabeça fascista, acredita ter feito a coisa certa. É uma lástima que tenhamos pessoas assim na educação – aliás, é por isso que a educação no Brasil está falida.

 

ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Rio de Janeiro: Record, 1998.

 

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia

Departamento de Ciências Jurídicas

Doutor pela Universidade de São Paulo

 



[1]A citação das análises de Umberto Eco (1998) não é literal, mas o leitor encontra sua posição descrita completamente às páginas 43 e seguintes do referido livro.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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