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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O direito na crise de civilização


O aspecto social do direito tem vários significados e indica que a crise de civilização tem no direito um momento decisivo. A crise de civilização indica que, com o desprezo da sociabilidade jurídica, agrava-se uma crise de solução de continuidade. A crise mundial (não apenas econômica) nos avisa que podemos perder várias das instituições que conhecemos hoje. Mas, vejamos este raciocínio de modo expositivo:

1. O direito reflete as aspirações gerais (fato social);
 

2. O direito é social em sua extensão, atinge a todos (erga omnes);
 

3. O direito pode ser dirigido para a solução dos principais problemas sociais (welfare);
 

4. O direito pode ser produzido, mesmo que seja no Parlamento convencional, de forma democrática, com a participação de amplos setores sociais (democracia direta, pluralismo jurídico);
 

5. Sem dialogar com o Mundo da Cultura, o direito não se “encarna”, se entendermos que a cultura é nossa segunda pele;
 

6. A história é essencial, elementar para que o direito se alimente dessa condição pública da cultura: “não basta parecer honesto, é preciso ser honesto”;
 

7. O direito tem que ser realidade social, não lhe basta o entorno, como contorno e fronteira da própria realidade, uma vez que a realidade não apenas lhe circunscreve, delimita – antes o define, sendo sua essência;
 

8. Para ter legitimidade, o direito precisa alcançar a justiça amplamente (maximin);
 

9. O direito deve inibir e reduzir as desigualdades, sem abalar as diferenças (discrímen);
 

10. Mesmo nas sociedades divididas em classes, o direito deve impor limites às desigualdades, pois estas geram contradições que engendram a dissolução social (uma das lições da Colonização);
 

11. Sem que o direito tenha amparo no poder social, o controle social é ineficaz e a repressão não é suficiente para conter a diáspora social ou a criminalidade;
 

12. Como fenômeno antissocial, o próprio direito perde suas garantias sociais e institucionais (a mais profunda lição jurídica do Estado de Direito);
 

13. Sem legitimidade social, o direito se limita ao formalismo, mas sem que o Estado de Direito seja socialmente representativo;
 

14. Se o direito não é social, deixa de ser protagonista e, sem ter capacidade de dirigir a ação, o direito se submete como secundário, frente ao poder, assim como o sujeito de direitos;
 

15. O legalismo impõe a ideologia como farsa e aporia de que o direito é a lei;
 

16. Como formalismo, o direito se restringe ao funcionalismo em que a forma predomina sobre o conteúdo (“Não há vida fora do processo”);
 

17. Limitado ao procedimentalismo, o direito não mais se dirige pelo princípio da realidade;
 

18. Isento da realidade, o direito é ficção, mas como ideologia, farsa, e não como fabricação humana que implica em ideal;

19. Sem expressão social, o direito perde convencimento e não há crença no possível, sendo impossível a unidade;
 

20. Restrito ao individualismo jurídico, o direito desprende-se da continuidade;
 

21. Refém da perenidade, o direito não atua como instituição;
 

22. Adstrito ao momentâneo, não há teleologia e a celeridade subverte a segurança jurídica;
 

23. Sem a conotação social, o direito é instável e, portanto, gera-se uma insuperável insegurança jurídica;
 

24. Sem o direito social, a justiça é indizível;
 

25. Sem sociabilidade, o direito se reduz ao monismo de subsunção, o direito que provém do Estado tende a se identificar com o poder estabelecido;
 

26. Ao servir à Razão de Estado, o direito se desincumbe da obrigação de servir à sociedade;
 

27. Sem apelo social, o direito serve à manutenção do poder estabelecido e, por não ter aceitação social, o direito se manifesta como repressão;
 

28. Como fato social, o direito é valor – valor de agregação –, é um direito-valor, e sem este valor social, o direito se limita à repressão;
 

29. Estabelecido como repressão, o direito produzido pelo Estado Penal desliga-se das premissas do liberalismo clássico e, de liberal-burguês, converte-se em força absolutista;
 

30. O direito repressivo é limitador do próprio capital;
 

31. Impondo-se como repressão, o direito recupera forças anticapitalistas, pois a liberdade é essencial ao individualismo econômico (uma lição da sociologia clássica);
 

32. Com efeitos jurídicos antissociais, o direito tenta salvar o capital com a concentração de poder – daí o uso recorrente das medidas de exceção;
 

33. Sob o Estado Penal, desconsiderando-se o direito como fato social, as implicações liberais do direito se desfazem e a própria liberdade se desfigura;
 

34. Com a dispersão social do direito, as forças do capital disruptivo – centrífuga para os capitais e centrípeta para o poder - ficam incondicionadas e este é o centro da crise de civilização (de valores e de significados);
 

35. Restringindo-se a liberdade de ação e de criatividade das forças produtivas, o direito cria outra faceta da contradição que atinge o capital, a quem foi criado para proteger;
 

36. Sem liberdade, o direito pode assistir à constrição dos direitos individuais e civis;
 

37. Sem a liberdade como eixo, sem o contraditório, o direito deixa de ser direito, ressurgindo como antidireito – um Estado de Exceção Permanente;
 

38. Sem a segurança institucional do Estado de Direito, assistimos atordoados, em meio à incompreensão jurídica que aflora como regra de poder, a uma nova modalidade de subversão do direito: o golpe institucional;
 

39. Sem a mínima segurança de que o direito seja portador da esperança – algo como a famosa “expectativa do direito” –, as crises institucionais assumem um caráter espetacular, sem dimensão, na vida moderna;
 

40. Sem a força da convicção, o direito não funciona como ficção, um constructo que dirige nossa convicção na perfectibilidade;
 

41. Se o direito não é mais uma ficção (jurídica), desfaz-se a esperança de resolver o presente para olhar o futuro (teleologia);
 

42. Sem força social, o direito não serve como remédio jurídico à crise de civilização, uma crise muito grave, uma vez que aponta perigosamente para fenômenos sociais de solução de continuidade;
 

43. Sem o direito como teleologia, é possível que não haja futuro ou, como se disse sabiamente, que haja “saudade do futuro”;
 

44. Enfim, sem o alcance social, o direito não é solução, mas sim problema social que se agrava como injustiça.


Na Modernidade Tardia, o direito se fortalecia com a segurança social – inclusive quanto à estabilidade moral – e impelia os desajustes a se manterem sob limites mínimos de obrigação moral. Na chamada pós-modernidade, a simples ideia de regras e normas é atordoada.

Fonte: Prof. Dr. Vinício Carrilho Martinez
Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas

  

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