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Vinício Carrilho

O direito é um ideal


Se pensarmos, por exemplo, na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei de Execução Penal teremos a certeza de que o direito nos leva, em busca da Justiça, como se fôssemos animados por um ideal – ideal no sentido de que se trata de uma realidade jurídica que não se verifica na realidade fática, algo que é almejado, desejado, mas que está muito distante do quadro que se tem no cotidiano. Algo a ser buscado e conseguido, mas somente se conseguirmos muitos outros adeptos a fim de participarem de nossa visão e esforço em transformar radicalmente a realidade vivida. O ideal é um objetivo longínquo, distante, realmente idealizado, vivente no mundo das ideias, mas não é uma ideologia, entendendo-se a ideologia como uma espécie de falsidade nas premissas da argumentação, na formulação inicial dos pressupostos. A ideologia pode ser entendida como um tipo de meia-verdade, às vezes, uma mentira por inteiro. Quando se fala de ideal, também é bom lembrar, trata-se de uma miríade, uma utopia que nos move para uma realidade quase perfeita, “idealizada” porque só existe no mundo das ideias, e que para se efetivar é necessário promover uma verdadeira revolução do status quo. Neste caso, porém, é preciso diferenciar ideal de utopia, pois o ideal pode ser tão distante da realidade, como um sonho, que nunca será realizado, sendo sempre uma aspiração que nos leva à busca da perfeição.

Contudo, como o homem é um ser finito e imperfeito, sua caminhada rumo ao ideal de perfeição nunca será alcançado – quanto mais se avança na formação e no desenvolvimento humano (processo de humanização), mais percebemos o quanto falta para avançar, ou seja, temos a sensação de percorrer uma longa distância, sempre andando, mas vendo esta mesma distância aumentar infinitamente. Isto ocorre porque, motivado pela perfectibilidade, como busca da perfeição de si e de seu entorno, o homem adquire consciência de suas falhas e imperfeições. É como estudar constantemente e chegar à conclusão de que quanto mais estudamos, menos sabemos. Não é como andar em círculos, sem sair do lugar, pois de fato nós saímos do lugar; seria como subir em um caracol, em espiral, na mesma direção, mas em níveis ou em altura diferente a cada volta no círculo. Já a utopia é um objetivo que pode guardar traços de realidade, ainda que também seja uma rota idealizada. Utopia vem do grego utopos (u = não; topos: lugar), um não-lugar que se almeja, mas que não existe do modo como pensamos e queremos na realidade vivida.

Existem utopias clássicas como o “Reino de Deus na Terra” ou o sonho comunista de uma sociedade sem dominadores e oprimidos, sem o Estado repressor ou o direito que defende a propriedade. As utopias comunais, no entanto, tem origem variada, a exemplo da descrita no livro adequadamente denominado de Utopos (1516), de Thomas Morus – um renascentista que passou a se integrar ao fanatismo religioso católico da época, em luta acesa contra as reformas protestantes. Portanto, este idealismo, como utopia, lugar ou realidade que não existe, mas que pode vir a existir, tem ramificações variadas, indo do ateísmo ao catolicismo ortodoxo. Isto é possível porque o ideal representado pela utopia retrata uma expectativa complacente: uma virtualidade que não existe em si ou por si mesma, mas objeto da fabricação humana.

Renascimento: renascer das utopias

Aliás, o Renascimento é um período muito rico para vermos as criações humanas, especialmente os ideais e as articulações sociais. Pode-se ver no Renascimento o surgir de instituições bastante concretas no mundo moderno, mas que se alimentaram de utopias bem embasadas. Este é o caso do filósofo inglês Francis Bacon, no romance (conto) Nova Atlântida, ao definir/defender um Estado governado por pesquisadores, cientistas racionalistas: antecipando-se à meritocracia, entretanto, não se propôs algo que lembrasse a tecnocracia. É fundamental que se esclareça, portanto, que o ponto forte desse texto de Bacon é o sentido tácito de Justiça da Casa de Salomão, e que tinha a ciência como fundamento/objetivo: “O fim da nossa instituição é o conhecimento das causas e dos segredos dos movimentos das coisas e a ampliação dos limites do império humano para a realização de todas as coisas que forem possíveis” (Bacon, 2005, p. 245). Não há como não ver outro indicador de que o “direito à educação” recebia ali um empuxo abalizado para superar o mecenato: princípio educativo predominante baseado nas técnicas da “imitação dos melhores” (clássicos) e da oratória (arte de convencer pela lógica interna do melhor argumento).

Por isso, Bacon fora um precursor do Estado Cientificista. Mas, apesar do empenho de Bacon em prol da ciência, ele também fora alvo das limitações de sua época, porque, dentre outras, rendeu-se ao espontaneísmo, ao descrever algumas das atividades da própria casa de pesquisas: “Conseguimos obter numerosas espécies de serpentes, vermes, moscas e peixes, de substâncias em putrefação; e alguns desses animais chegaram a ser criaturas perfeitas como os animais ou pássaros, providos de sexo e capazes de se propagarem” (Bacon, 2005, p. 248). Por fim, o Renascimento, período de criação tanto da Razão de Estado quanto das ideologias de autoconservação do poder (sofreu da Inquisição), mas gerou métodos empíricos de obtenção da verdade. Posteriormente, esse Estado de Direito rudimentar (chamado de Estado Livre, pelo filósofo do direito Thomas Hobbes) sofreu pressões sociais e econômicas ainda mais decisivas pelos “aportes do capital”. Vale ressaltar que o humanismo clássico dividiu espaço e atenção com o método empírico, com as novas “necessidades” materiais de expansão do próprio capital e que, em parte, exigiu uma “nova” concepção: o movimento chamado de Mecanismo. Certamente, uma concepção de vida ou visão de mundo em que a realidade social guarda leis e regras assemelhadas aos mecanismos criados pelo homem, estruturas como esteiras, sistemas como roldanas, ritmos ditados por engrenagens.

Com o direito, primeiro como instrumento de poder, depois como ideal e utopia, não seria diferente. Do Renascimento ao Iluminismo, período em que surgiram as principais utopias ainda existentes na vida social moderna, o direito foi tido como um meio para se construir um mundo melhor, mais justo, quase-perfeito. Mas a utopia do direito, assim como a que move a ciência, é um destino compartilhado e isto quer dizer que muitos somaram forças para transformar o estado de coisas que herdaram. Essa força coletiva, movida pela utopia ou ideal realizável, levaria o homem a “lutar”, travar batalhas sangrentas, mortíferas, para ter o que quer. Esta luta pelo direito é como a luta pela vida e, por isso, há uma intensa dor de parto (com simbolismos, mas também diante do “realismo político”). Como nos ensinou o jurista alemão Von Rudolf IHERING, além de medir esforços, compor e ajustar meios e fins, a luta pelo “bom direito” (hoje equivaleria à Justiça Social) define bem a personalidade:

O que pretende é fazer prevalecer seu bom direito.Alguma coisa no seu interior lhe diz que não pode recuar, que não se encontra em jogo o valor do objeto em litígio, mas sua personalidade, sua honra, seu sentimento de justiça, seu auto-respeito. Em poucas palavras, o processo transforma-se de uma questão de interesse numa questão de caráter: o que está em jogo é a afirmação ou a renúncia da própria personalidade (Ihering, 2002, p. 38 – grifos nossos).

 

A luta pelo direito, no entanto, só faz sentido se nos transporta para o ideal de Justiça que há na própria formulação clássica do pensamento revolucionário e nos objetivos da democracia radical. Porém, para vermos que tanto o ideal quanto a utopia estão longe de um plano realizável no curto prazo – e mesmo que sejam essenciais ao homem – basta-nos analisar a referida Lei de Execução Penal diante da realidade carcerária brasileira. Pode-se concluir, ainda com base no senso comum, que o sistema não educa, não recupera ninguém.

Desumanização sistemática

Sabe-se hoje perfeitamente que a repressão policial, carcerária, penal, no Brasil, levou/instigou o recrudescimento das organizações criminosas. No Rio de Janeiro, foram alocados juntos os presos comuns e os presos políticos, no presídio da Ilha Grande, e em São Paulo, a partir da década de 1990, surgiu o PCC. Comparativamente ao cenário internacional, a LEP (Lei de Execução Penal), de 1984, esteve associada ao esforço do legislador brasileiro para regular, positivar a dignidade humana. Ao revés disso, no pós-Constituição Federal de 1988, mas ainda nos anos 90, um contra fluxo foi observado com o crescimento do apelo emocional por medidas de endurecimento penal, seguindo-se o Movimento Tolerância Zero e “Lei e Ordem”.

Desde sua promulgação, a LEP tem sido considerada ideal, surrealista, diante da realidade carcerária brasileira – porém, diante dessa “constatação”, deve-se mudar a lei ou, como está, a lei pode ser um guia, um farol, para se transformar a realidade opressora? A partir da década de 1990, houve sensível crescimento populacional nos presídios paulistas. Este fenômeno infere uma competência técnica superior do Estado na repressão e no combate à criminalidade ou é espelho do Estado Penal no Brasil? A Lei dos Crimes Hediondos (1990) e o chamado Regime Disciplinar Diferenciado (2003) podem ser colocados dentro do mesmo pacote prisional de repressão? Seriam inconstitucionais? Se a LEP é confrontada na vida prática dos presídios e pela legislação restritiva de direitos, como o RDD, não estamos afrontando o Due Process Law no Estado de Direito? Em que medida o neoliberalismo provocou o surgimento do Estado Penal? A ressocialização, de efeito antiliberal, pois que nega a pena como supressão da liberdade, tem qual fundamento político-ideológico? Quais seriam as diretrizes arroladas na LEP e que a realidade carcerária desmente sistematicamente? As iniciativas de repressão tomadas pelo Estado, a partir de 1990, costumam ser associadas ao neoliberalismo – do Estado Social ao Estado mínimo, caminha-se em prejuízo do direito à própria Justiça.

Sabemos perfeitamente que, antes da revolução do status quo, é preciso construir um ideal, uma utopia que nos guie e reforce sonhos em comum; todavia, como se diz no popular, para que se mude/transforme radicalmente a realidade, muita água deve passar embaixo da ponte.

 

Bibliografia

BACON, Francis. Novum Organum & Nova Atlântida. São Paulo : Editora Nova Cultural, 2005.

IHERING, Von Rudolf. A luta pelo direito. São Paulo : Martin Claret, 2002.

 

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

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