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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O Direito contra a Crise de Civilização


Exemplo na escala micro da crise de civilização é topar com uma quadrilha – de jovens de classe media alta, alguns com 15 anos de idade – especializada em armar sequestros e roubos, depois de monitorar suas vítimas pelas páginas pessoais nas redes sociais.

Em alguns casos sabiam a que horas o empresário ia dormir, em que momento saia e voltava de casa, por onde havia viajado, o que comprara, as rotas de circulação utilizadas pela esposa, filhos e muito mais.

Está certo que, em perfeito juízo, ninguém deveria se expor desse modo publicamente. Todavia, imaginar que jovens de 15 anos já entortassem a vida desse modo não justifica a estupidez dos outros. Pense: quantas informações – sigilosas, embaraçosas, lucrativas nas mãos de criminosos – você já teve acesso ao longo da vida e nunca as utilizou para chantagear as pessoas envolvidas?

Tornou-se comum indicar que há uma clivagem entre ética e técnica, como se não pudessem ser articuladas, compartilhadas. Desde a Grécia antiga que viemos sabendo que a técnica não existe sem uma base ética. A techné, algo como conhecimento técnico, mais prático, só fazia sentido se fosse para satisfazer as necessidades do cidadão grego. Logo, a ética nasceu atrelada à técnica.

Pois bem, as redes virtuais foram criadas, desde a clássica Internet (nos anos 1970-80), para satisfazer a necessidade da comunicação. O fato de que alguns se utilizassem dos martelos na Grécia clássica para agredir ou das redes para sequestrar é uma questão ética, isto é, de quais valores estão incutidos ou não no sujeito.

Um filósofo francês chamado Pierre Lévy lembrava que é impossível saber quantas vezes, na história da humanidade, o martelo foi inventado e reinventado em suas formas e usos. Nós conhecemos a técnica atual, mas não sabemos se nossos ancestrais levaram para o túmulo seus próprios modelos.

O que o filósofo da técnica quer nos dizer é que a técnica tem infinitas utilidades, empregos adaptados às necessidades mais usuais (portanto, um “uso comum”) e uma infinidade de usos particulares que fogem à “lógica social” descrita pelos grupos de técnicos e trabalhadores. Por isso, milhares de pessoas podem ter criado seus próprios martelos, alguns para pregar pregos, outros para agredir e ainda há os que servem aos jogos olímpicos.

É fácil perceber como a técnica acompanha a ética e vice-versa. Ou seja, as redes sociais devem ser suprimidas porque alguns criminosos as utilizam para roubar e sequestrar? Devemos punir os usuários, com mais censura, porque alguns tolos postam suas vidas como se estivessem na sala de casa? Devemos pagar pela tolice ou canalhice dos outros?

Essa é a questão, saber quais valores estamos construindo para a vida social. Pensemos o que realmente é importante hoje em dia: trabalho ou sucesso imediato? Educação ou dinheiro? Justiça ou levar vantagem? Construir ou pegar pronto? Respeitar ou se impor? Trabalhar ou simplesmente enriquecer? Ser crítico ou cínico? Consciência ou compras no shopping? Dedicação ou comprar feito? Celebridade ou responsabilidade social? Consumismo ou ambientalismo?

Será que essas perguntas, atualmente, dependem da faixa etária em que se encontra o sujeito que as responde? Diante da atual crise de civilização, de significados e valoração, a percepção entre realidade e egoísmo trata a todos como objetos e, de posse desse tratamento coletivo, jovens e experientes apresentam a mesma estrutura cognitiva, emocional, moral.

Rui Barbosa dizia que os canalhas também envelhecem – e hoje podemos dizer que a mesquinharia é uma reação comum. Há de se convir que ser definido como mesquinho não é um elogio. Mesmo que o indivíduo leve vantagem em tudo e seja rico a ponto de mandar “comprar a felicidade”, não será feliz se não puder “defender moralmente sua própria vida”.

Em uma frase, pode-se dizer que a crise de civilização banalizou, a ponto de não ter importância significativa, a consciência e a ética, como reflexão e comportamento, a responsabilidade e o comprometimento com a coletividade e com a preservação dos direitos básicos do ser humano. Quando só há interesse consigo mesmo não resta tempo para o Outro.

No mundo moderno, em que as paixões não ultrapassam o eu, não existe o nós. Contudo, é curioso pensar que a crise não é apenas do Ocidente, do mundo capitalista. Sem que se debata a profundidade ou os interesses obscuros envolvidos na denominada Primavera Árabe, é perfeitamente válido dizer que milhares, milhões de jovens e mais velhos estavam em desacordo com muitas das tradições impostas.

Se eles terão coragem, condições, consciência suficiente para abrir a cultura sem perder o lastro e o elã social que sempre organizou suas vidas, é a prova dos nove. Se conseguirão banir tradições negadoras da condição humana (a exemplo da burca e da proibição de mulheres irem à escola), sem se ver desmoronar diante do que há de pior no capitalismo – como a oclocracia ou governo dos piores –, isso também é outra questão. Sua persistência e perspicácia nos dirão.

De modo geral, mais ou menos manipulado pelo Ocidente, o chamado Oriente Próximo se pergunta sobre a existência e a função dos novos direitos. O Oriente entrou na fase política da luta do Direito a ter direitos.

De certo modo, em decorrência de sua última fase histórica de lutar pelo direito, o Oriente ensina ao Ocidente qual o real significado da ética, como valores e forma de vida coletiva, e assim se dizer o direito. A crise do Oriente provocada pelo definhamento das tradições nos ensina que nossas tradições também estão corrompidas, carcomidas, desprovidas de reconhecimento.

Democracia, ética, direitos, responsabilidade, coletividade pouco dizem para a maioria dos povos ditos ocidentais. Mas, para o Oriente que quer se redescobrir – ainda que muitos de seus povos sejam instigados pelos interesses econômicos do Império –, os valores ocidentais ainda precisam ser experienciadas.

Quem sabe, dessa nova de experiências que já julgamos falidas, o Oriente venha a dar nova luz ao nosso próprio conhecimento. Da luta pelos direitos no Oriente pode nascer o aprendizado necessário à ética do Ocidente.

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

 

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