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Vinício Carrilho

O capital cobra vidas


O capital cobra vidas no acerto final das contas. Como vimos no incêndio doloso – com intenção de matar (o resto é eufemismo jurídico) – na boate Kiss de Santa Maria/RS, ocasionando a morte de mais de 200 pessoas, o capital tem regras claras e são cumpridas à risca. Em local que poderiam estar pouco mais de 500 pessoas, estavam reunidas cerca de 1.500; após o início do incêndio, os seguranças correram para a única porta disponível e a travaram. Os seguranças exigiam a apresentação das comandas devidamente pagas e carimbadas para liberar a saída. Se a pessoa O capital cobra vidas - Gente de Opiniãonão comprovasse ter pagado o seu consumo, seria condenada a ser morta por asfixia, queimada ou pisoteada (ou as três coisas juntas). Os insumos do capital na vida comum são tão marcantes que somos colonizados, inscritos fisicamente, moralmente, nas ações, no trabalho, nas subjetividades, nas relações sociais e na formação da família,. (Já me disseram que apesar de ser honesto, inteligente, trabalhador, não servia para a moçoila). Enfim, tal qual os donos da boate deliravam em ter todas as comodidades materiais possíveis, quando você ou eu dormimos e, literalmente, sonhamos com o carro do ano, o apartamento de 150 m2, com a promoção no trabalho que nos permitiria ter uma casa no campo ou na praia, simplesmente, estamos imersos na condição de acólitos do capital. A diferença é que não mandaríamos trancar a única porta de saída, vendo-se que a fumaça altamente tóxica mataria centenas de pessoas em segundos. Como expresso na lenda do capital mais antiga que se tem notícia, os donos da boate fizeram um paco de morte com os donos do capital. As facilidades prometidas pelo Diabo na lenda são do mesmo tipo das que os proprietários almejavam. Todas as normas de segurança foram descumpridas porque – como alegam os capitalistas – essas medidas encarecem o custo de manutenção dos estabelecimentos, a exemplo da instalação de portas corta-fogo, extintores que funcionassem, saídas alternativas e outras. A versão mais antiga da lenda do capital que se conhece foi compilada e editada pela editora espanhola Siruela. Esta é a verdadeira versão apócrifa do texto e que serviria de inspiração para Marlowe, teatrólogo contemporâneo de Shakespeare. A versão mais atual está sendo escrita com os relatos dos sobreviventes do incêndio. Há em comum a ocorrência de mortes violentas e dolorosas, a fim de saldar o espírito devastador do capital. No texto inicial da lenda, anterior ao século XVI, lê-se que: “É chamado também de cárcere, pois quem for reprovado estará preso eternamente, pois no inferno como na prisão eterna a alma é julgada e condenada e a sentença se pronuncia como em um tribunal público” (Solar, 2003, p. 74). Esta compilação de uma cópia holandesa é assinada pelo editor inglês Johann Spies, em 1587. Nos relatos dos sobreviventes, jovens dizem que havia pilhas de até dois metros de corpos empilhados no banheiro e na porta de saída, além de alguns bombeiros revelando que os celulares tocavam (um com até 140 chamadas) nos bolsos das calças dos jovens mortos – deveriam ser seus pais.

▪ SOLAR, Juan José del (editor). Historia del Doctor Johann Fausto – anónimo del siglo XVI. Siruela : Madri, 2003.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia

Departamento de Ciências Jurídicas

Doutor pela Universidade de São Paulo

 

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