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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Inteligência secreta ou oculta?


A criminalidade e o controle que tem sobre o Estado e/ou suas instituições chegou a tal ponto que duvidamos de nossa própria inteligência. Eu realmente estranho muito as genialidades do nosso Estado.

Antes deste tema, tivemos a lei proibindo que as universidades federais exigissem titulação de mestre e doutor em seus concursos. Pode ser que já esteja contaminado pelo pessimismo, mas não acredito em erro material, isto é, não creio que um especialista ou gênio em direito tenha cometido um erro na “construção da fórmula” (em outros termos, pensou uma coisa, escreveu outra). Errar é humano, mas quantos leram esse documento até ser aprovado? Até porque esses especialistas são selecionados no concurso público mais concorrido do país.

Assim, o manual de infiltração de agentes ou policiais (o Estado) nos presídios controlados pelo crime organizado me suscitou uma dúvida: trata-se de inteligência secreta ou oculta? Não é com ironia que escrevo, é realmente com surpresa e carregado de dúvidas. O Estado brasileiro é tão cheio de surpresas e artimanhas ou pegadinhas que chego duvidar que não tenha entendido algumas coisas que deveriam ser meio óbvias.

Confrontado com o fortalecimento do narcotráfico e organizações criminosas mais complexas, o governo federal criou um manual de inteligência para ser adotado em presídios de todo o país. Intitulado Doutrina Nacional de Inteligência Penitenciária, o documento - classificado como reservado, o que o deixará escondido por cinco anos - prevê técnicas de disfarce para agentes e medidas como a intercepção postal de correspondências. O objetivo da Doutrina é subsidiar o planejamento de políticas públicas, difundir procedimentos e tornar a inteligência penitenciária um instrumento de combate ao crime organizado dentro e fora dos presídios. "Torna-se imprescindível como arcabouço para o mapeamento dos líderes e facções criminosas que, a partir dos estabelecimentos penais, tecem suas conexões e orquestrações ilícitas extra-muros, colocando em risco a segurança e a ordem pública", diz o documento, [...] Entre as "ações de busca" citadas estão interceptação postal de correspondências, interceptação de sinais e dados, infiltração de agentes e desinformação, que consiste em "induzir alvos a erros de apreciação", levando-os a executar um comportamento determinado. Outra ação destacada é a provocação, "realizada com alto nível de especialização para fazer com que uma pessoa ou alvo modifique seus procedimentos e execute algo desejado", sem desconfianças. Observação, memorização, foto interpretação, disfarce, análise comportamental e leitura da fala a distância são algumas das principais técnicas operacionais de inteligência mencionadas na Doutrina. O disfarce prevê o uso de recursos naturais ou artificiais para evitar o reconhecimento dos agentes. Já a foto interpretação é definida como a técnica que capacita os agentes a "interpretarem corretamente os significados das imagens obtidas". As operações de inteligência, segundo a Doutrina, "estão sempre sujeitas ao dilema efetividade versus segurança". "Ainda que a segurança seja inerente e indispensável a qualquer ação ou operação, a primazia da segurança sobre a efetividade, ou vice-versa, será determinada pelos aspectos conjunturais", sustenta o documento. Também está prevista a utilização de "verba secreta", que deverá ser destinada para o desenvolvimento de ações de caráter sigiloso[1].

 

Minha primeira dúvida é exatamente saber se houve outro desses tais “erros materiais”, de lógica simples: se os presídios são administrados pelo Estado – se todos nós sabemos como é que os presos mantêm sua rede de comunicação, sua inteligência social, dentro e fora dos presídios – para que devemos infiltrar agentes disfarçados de presos? Confesso que essa eu não entendi, é como infiltrar alguém dentro de sua empresa (se você é empresário) ou em sua casa (se você mora com mais alguém). Não seria mais fácil retomar o controle perdido há muito tempo, premiando os bons policiais e agentes penitenciários e punindo os corruptos? Para isso, não deveríamos ter um exemplo de organização, eficiência e honestidade que viesse de cima, ou seja, dos ministros das pastas envolvidas? Também não seria preciso pagar salários decentes, para que as pessoas não fossem tentadas pelas ninharias dos presos comuns?

            A diferença do título é simples: se a inteligência é secreta, então, o governo está certo em armar arapucas para desvendar as máfias que se apoderaram dos presídios (se bem que, neste caso, teríamos de concordar que o Estado foi cúmplice do crime e que os responsáveis pela administração do sistema teriam de ser punidos, tal qual os mafiosos perseguidos); agora, se a inteligência é oculta, a coisa muda um pouco e acontece o que você está imaginando, isto é, neste caso estaremos na Terra do Nunca, onde vigora a desinteligência, a falta de senso crítico das coisas e por isso toda inteligência estará irremediavelmente oculta, bem longe dos olhos do homem médio (será apenas mais uma das macaquices do Estado brasileiro, dos gênios da segurança pública que ajudaram a deixar o crime como ele está hoje).

Um dos recursos utilizados como você pode ler é exatamente a desinformação. Mas, diante da minha dúvida atroz, pergunto: desinformação de quem? Por fim, se você notou bem, há uma verba secreta. Verba secreta? Mas, secreta por quê? Seu gasto deve ser escondido de quem? Será que o crime organizado também acompanha os gastos públicos? Eu acho que sim, mas para isso eles têm os “gravatas”, como dizem, para monitorar os trabalhos. Quanto mais eu lia a reportagem, mais sentia o desconforto na minha própria inteligência, mais me via assistindo CSI ou NCSI (aliás, muito bons, para apurar a inteligência policial). Um aluno me perguntou: “Quem no Estado não gosta de uma verbinha secreta, heim?” Nem precisa ser araponga para responder essa.

            Eu confesso que estou numa tremenda dúvida quanto a este caso, ainda que, não importe muito porque estaremos presos na condição de “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Parece pegadinha do ENEM, mas não é. Temos aqui apenas mais um capítulo da inteligência nacional, diretamente dos manuais da CIA, no combate à Al Qaeda. Para que as ações fiquem completas, só falta mesmo comprar um software de inteligência artificial. Inteligência secreta, inteligência plantada, inteligência artificial, realmente, estamos evoluindo; haja inteligência para tanta gente bacana, iluminada por Deus.

            No fundo, tenho mesmo é inveja do meu avô que não precisava entender a inteligência nacional. Toda vez me pergunto, por que é que essas mensagens me perseguem? Deus nos salve da inteligência dos outros. Estou com vergonha de não-ser tão-inteligente a ponto de escrever sobre isso.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO

Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ

Pós-Doutor pela UNESP/SP

Doutor pela Universidade de São Paulo

 

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