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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Elites Golpistas


Há alguns anos, tivemos uma onda enorme de instabilidade, com movimentos sociais nas ruas, greves, um intenso questionamento do status quo social e partidos políticos com suas ideologias comunistas, socialistas, anarquistas, democráticas. A tese clássica fazia referência à necessidade de se modificar as estruturas sociais e econômicas, com reforma ou revolução do capitalismo tupiniquim. As reações começaram a agitar as elites e as casernas, as cavernas também, porque logo em seguida estourou o golpe militar de 1964 e começaram os assassinatos coletivos. Os movimentos de resistência foram silenciados, os políticos questionadores (além dos honestos) foram cassados ou caçados, muitos foram mortos. Por isso, quando a mídia e os jornais só noticiam a catástrofe social, a extrema violência que tomou conta das ruas e das casas, é impossível não pensar na saída brasileira para gerir a incompetência social que nos inunda há séculos. Representantes das elites em defesa de seus privilégios gritam com fogo nos pulmões que os direitos humanos só protegem bandidos, e que na morte da gente inocente ninguém vai ao funeral. Na verdade, particularmente, não vou ao funeral de ninguém, nem dos bons, muito menos dos maus. E olha que o Mal para mim tem longa extensão, catalogação e espécies que não caberiam num só artigo.

Em todo caso, a guerra travada pela polícia e o crime organizado, em boa parte do Brasil, a violência banal, por nada, os crimes bizarros, hediondos, tomam a cena no lugar da total incapacidade de gestão regular da vida pública, da corrupção que mata crianças e idosos pela falta de atendimento médico-hospitalar, da educação que não ensina nada. A normalidade, o reconhecimento dos valores republicanos, a solidariedade, a interação social, tudo que importa na vida do homem médio, no Brasil, é detonado pela corrupção da vida pública, com a sinalização de que a vida certa é a do roubo fácil. Afinal, não é isso que fazem grandes e pequenos corruptos? Como é que um professor ou policial pode ser exemplo a ser seguido se não ganham nem para pagar o almoço? Muitos professores tomam merenda na escola, no lugar do aluno que recusou, e alguns policiais aceitam o famoso cafezinho. Neste modelo de regalo social, quem é que descumpre os direitos humanos? Quanto ganha um traficante de chinelos? Por dia ganha o mesmo que o policial e o professor, só que por mês. Por que nossos esbravejadores não gritam que a corrupção mata muito mais do que os assaltos? Por que não pedem “penas pesadas” para esses violadores do direito? Aliás, quem é o violador do direito?

Na verdade, quando ouvimos esses longos debates que não levam a nada, sobra o sofrimento – o sofrimento de ver tanta desinformação sendo levada a pessoas simples, influenciáveis, mas de bom coração que é o povo comum. Primeiro porque se fala muito do que não se sabe nada, repetindo a conversa de botequim, depois porque o poder não tem interesse sério, regular, em atacar o problema. Na melhor das hipóteses, é retórica; na pior é bravata. Quando me dizem que nunca tive alguém morto na família, de forma violenta, lembro que fui tratado muitas vezes em hospital público e frequentei a escola pública. Quer dizer que carregarei até o fim da vida as sequelas decorrentes do descumprimento dos direitos humanos, da corrupção, do descaso, da violência institucional. Não entrarei em detalhes porque o melodrama é o caminho dos esbravejadores, não o meu, mas sei bem o que é a violência, qual é a pior violência. Pense friamente o que é pior, quem causa mais males sociais: aquele bando que explode bancos ou os políticos, secretário, governador, senador que consomem os recursos que seriam destinados às políticas públicas? Quantas crianças morreram nesses minutos em que você lê o artigo, porque o dinheiro que seria para comprar os remédios, pagar os médicos, foi roubado? A pior arma não é a pistola, é a Mont Blanc.

Para os esbravejadores, do passado e do presente, o caminho fácil era e é o golpe. No passado, foi um golpe militar, virulento, às surdinas, sem dó nem piedade da democracia. No presente-futuro, espero estar errado, mas se avizinha um outro tipo de golpe também na surdina, apenas não tão violento quanto o de 1964. A vítima dessa vez não serão os direitos políticos, mas o conjunto dos direitos humanos. O golpe não será militar, com exposição de força extremada, tanques nas ruas e outras pantomimas, mas um golpe institucional, que remexa na base dos direitos fundamentais, que retire os entraves constitucionais à imposição da coerção e da força do Estado. Neste momento, os esbravejadores poderão comemorar as tais penas pesadas, duras, virulentas. Neste dia, teremos a lamentar mais uma vez a sorte da democracia brasileira, pois este será o sinal para avançarem em outra série de medidas de controle social. Antigamente, com a supressão dos direitos político-ideológicos estavam a meio-caminho do golpe; hoje, a questão é mais complexa e sutil, e a resposta será dada por meio da criminalização das relações sociais.

Mas, o que é isso? Significa que o Estado e seus aparelhos repressores irão controlar, punir, reprimir todas as ações que fogem à suposta normalidade social, de interesse do Estado e que indexada pela sociedade capitalista atual: do crime organizado ao controle das manifestações públicas. No Brasil, já vimos a primeira ação com a possível regulamentação do direito de greve, ou seja, não deverá haver direito de greve. A greve será tratada como crime; ao invés de enfrentar o problema que gerou a greve, vamos criminalizar as relações sindicais. A senha será exatamente está: regulamentar significa negar. Regulamentar a democracia = restringir direitos; regulamentar o direito = suprimir direitos; regulamentar os conflitos = punir exemplarmente (severamente) os que ainda não muito bem punidos. Para quem discorda da análise, pense se por penas mais pesadas não se escondem só as penas mais severas. Em 1964, jogaram os presos no Atlântico, hoje são despachados para a Amazônia. Lá atrás, os presos comuns foram confinados com os grupos políticos; hoje, o crime organizado é abastecido por homens treinados em forças especiais (ex-integrantes), perceptíveis na habilidade que demonstram nas estratégias e no manuseio de armas de grosso calibre. Em 1964 era a lobotomia, hoje é castração química. Não há criatividade, diante da incapacidade de formular um real projeto de organização social, as elites atualizam, replicam os métodos do passado.

Então, o que é ser severo se não for negar os direitos assegurados? Tal como em 1964, vamos “““resolver””” os problemas sociais negando os direitos fundamentais. O golpe institucional não será diferente do golpe militar – apenas a negação do problema e do direito será maquiada com mais ruge, sombras. Ao invés de luzes, teremos mais sombras sobre a realidade que herdamos das mesmas elites que agora querem golpear os direitos humanos. O que não é novidade, pois as elites brasileiras não surpreendem, são incapazes de resolver qualquer problema social – problemas criados por elas. As elites são fundamentalistas, sempre negam o direito para não mexer nos seus privilégios. As elites são previsíveis, são as únicas que querem o fim dos “direitos humanos” – o povo quer justiça, até porque nunca teve direito a nada. Em seu desconhecimento e arrogância própria aos tolos, as elites pensam em parar a história, como se pudessem deter a civilização trazida pelo direito.

Mal acordamos de um terrível pesadelo, já avançamos para outra noite escura, mal assombrada da história política brasileira. O pior mal do país é realmente a ignorância, em nome de um “bem”, vamos fazer o mal.

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

 

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