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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Do ódio de classe ao ódio social


O ódio de classe é uma dentre muitas razões – uma das mais fortes razões – para explicar o caos de violência “gratuita e cheia de sangue”, os ataques bárbaros a cidadãos indefesos (muitos cometidos por menores com extremo sadismo), a morte com aviso prévio que nos espreitam a todos. Como ensinou Thomas Hobbes, o filósofo inglês da soberania do Poder Político no Renascimento, o Estado se justifica porque o cidadão teme a morte violenta que é disposta no chamado “estado de natureza”. Desse modo, se o Estado se justifica para acabar com a violência extremada dos bárbaros incivilizados, logo, conclui-se que o Estado brasileiro não cumpre uma função elementar. O Estado brasileiro não presta segurança a seu cidadão, nem mesmo a sensação de segurança, como um estado de subjetividade que serviria de calmaria a muitos. Está entre o ser e o dever-ser; é valor negativo à sociedade global, mas é muito mais uma repulsa às elites do que uma maldade social inerente. Segue  lógica amigo-inimigo, apenas não é política, partidária, mas sim social, classista.

É certo que não é um fenômeno exclusivo do Brasil, porém, hoje me interessa falar de nós mesmos. No fundo, há uma enorme descrença no Estado de Direito – basta pensar que os “bandidos” também assistem TV e, portanto, sabem que o Congresso investe contra o Ministério Público – coletando assinaturas de corruptos para não investigar outros corruptos – e ainda contra o Supremo Tribunal Federal: “para anular a condenação de outros corruptos”. O povo, o homem comum e os “bandidos” sabem que os condenados no mensalão não foram e nem serão presos tão rapidamente quanto deveriam. Afinal, se para os pobres e “bandidos” a suspeita já os leva à prisão, o que dizer se fossem condenados pelo STF? É que pobre, certamente, não vai ser julgado pelo STF. A corte da magistratura foi criada para julgar outras cortes e nobrezas.

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Tudo que é honesto será profanado

O povo e o “bandido” sabem que a democracia, a República e a Federação, que eles ouvem na TV, também são faz de conta no nosso país – ao menos para eles. Sabem que a democracia é feita com a compra de votos e que os compradores eleitos (ou não) acabam absolvidos e soltos (quando por pura burrice chegam a ser julgados). Sabem que a política é feita por profissionais e que o povo só participa da festa vendendo votos. O povo sabe que os vendedores de voto também não vão presos. O povo bem pobre ainda sabe que não tem saúde e nem educação pública, sabe que a sua saúde depende, muitas vezes, do remédio comprado pelo “bandido”. Por sua vez, o “bandido” sabe que a carga ou o dinheiro roubado serão entregues ao empresário de uma grande rede (dessas com comerciais na TV) ou ao político profissional (de qualquer partido, de todos os partidos) para ser “lavado”.

O “bandido” – entre médio e pequeno – é submetido a outro maior; este, por sua vez, tem seu chefe no próprio Estado ou, em alguns casos, até mesmo em Brasília (e sei que o eleitor conhece alguns). A sensação de segurança para o “bandido” é saber qual a margem exata de seus lucros deverá repassar a outros agentes públicos: políticos, policiais etc. A sensação de segurança do “bandido” está em confiar em seus próprios meios e recursos; sabe que se precisar poderá contar com o infalível Tribunal do Crime. Neste tribunal não há apelação e nem revisão de pena.

O “bandido”, especialmente o pequeno, aquele que precisa se afirmar na estrutura do crime, elevando seu status como destemido, matador, espelha-se no grande e sabe que este nunca foi preso e que nunca será. Porém, o pequeno “bandido” almeja ingressar com o mesmo status do grande, não admite perder um segundo: daí a sensação de que vivem a 300 por hora, cinco anos em cinco dias. Vivem intensamente e morrem muito cedo. Os jovens que não tem paciência com nada tanto são os “bandidos” pequenos quanto são os filhos da burguesia. Time is Money.

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O Primeiro Comando da Capital foi criado para organizar os presídios, para impedir a violência e o estupro entre os presos, para refrear a violência do Estado. O PCC tem seu próprio Estatuto porque não confia no famoso Estado Democrático de Direito. A ideia de “comando” no nome vem para substituir a soberania perdida pelo Estado. O PCC foi criado para acabar com a insegurança jurídica dentro dos presídios. No começo, o governo gostou muito, achou que poderia economizar na contratação de agentes penitenciários. Depois, logo percebeu que perdeu o Estado todo e agora vemos como se espalhou pelo Brasil: Rondônia, Nordeste, Santa Catarina.

Apesar de todos os esforços grandiloquentes das elites que sempre nos governaram, o ódio de classe está no fato de que o “bandido” pequeno só conhece o Estado por meio do giroflex da viatura. Com a vista turva de ódio e de dor, ele não quer saber, é tão imediatista, consumista, extremista, “alienado” quanto o filho da classe média. Com a diferença de que se sente fora, totalmente alijado dos mecanismos de certificação, de validade e de reconhecimento da vida comum. Este “bandido” viveu a vida toda como se fosse um aneu logou, um homo sacer, um zé-ninguém, um bestializado.

Agora, tomado de ódio, porque não vê lugar no mundo para si, desconta a ira, o ódio no primeiro que passar a sua frente. Antigamente, quando as classes sociais eram bem mais definidas, chamava-se isto de ódio de classe (a exemplo dos luditas e dos atentados aos “meios de produção”); hoje o ódio se espalhou como em uma larga praia, por toda a sociedade. Do ódio de classe, viemos a conhecer, fomentar e praticar o ódio social. É claro que é preciso aprofundar muito esta análise, mas surge forte – como sol a pino na maresia – o ódio social e as subculturas da violência no Brasil. A maldade de hoje se espelha no cinismo de ontem.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO

Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ

Pós-Doutor pela UNESP/SP

Doutor pela Universidade de São Paulo

 

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