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Vinício Carrilho

Direito de livre-expressão


Na ordem de prisão do diretor-geral do Google no Brasil, o juiz da 35ª Zona Eleitoral de Campo Grande (MS), Flávio Saad Peron, afirmou que "a liberdade [de expressão] tem limites”. A prisão foi derivada de crime de desobediência de ordem judicial, por ter-se recusado a tirar do ar duas matérias ofensivas a um candidato de Campo Grande.

Na decisão, o juiz reconheceu que jamais pensaria em restringir a liberdade, que defende o direito, mas que há limites para o seu exercício. Aliás, esse talvez seja o tema mais debatido nos últimos três ou quatro séculos, desde que se firmou o próprio debate sobre o que era liberdade e os seus excessos.

Mais ou menos como o juiz, penso que o melhor direito é o que regula menos. Por isso, em tese, a liberdade de expressão não teria limites. Devemos pensar que o direito de livre-expressão é a consequência lógica de outro direito fundamental: livre pensamento e, derivadamente, livre-convicção. Isto é, o sujeito quer/pode expressar livremente suas convicções, vontades, certezas, crenças, valores.

O desenvolvimento natural da razão, do pensamento lógico, deveria propiciar em todos a consciência básica, necessária acerca das consequências do que fazemos e expressamos. A livre-expressão, portanto, é o canal de desenvolvimento de nossas potencialidades individuais e da capacidade de socialização. Sem a livre-expressão não há indivíduo que se socialize, pois só faz sentido expressar-se para alguém, para compartilhar.

Sem que se compartilhe livremente os sentimentos e as expressões próprias de cada um, é como se o ser social estivesse restrito ou fosse limitado pela vontade de outra pessoa. O ser social é aquele que se comunica, a exemplo dessa crônica. Aliás, a linguagem, de modo muito simples como comando de voz articulada, foi fundamental na transformação do hominídeo em homem.

O livre curso da razão, portanto, é o que nos caracteriza como humanos, e sem que se expresse livremente o resultado de nossa razão, estaríamos restritos, submissos, subsumidos, diminuídos em nossas capacidades.

Mas, ocorre que “quem fala o que quer, ouve o que não quer”. Em certos casos pode ser obrigado a ouvir a ordem de prisão ser decretada por um juiz. Em casos normais, digamos que o falastrão seria condenado por injúria ou difamação, por ter falado ou escrito algo desonesto sobre alguém.

Ocorre, porém, que há outros casos mais complexos, em que a repercussão do que fazemos – escrevendo, falando, filmando – pode ter consequências muito mais graves. Este é o exemplo claro do filme sobre Maomé conversando com um jumento e que tem gerado conflitos e mortes no mundo islâmico. Quem é intolerante, o cineasta e as mídias que divulgam o tal filme ofensivo, invasivo ou os indivíduos religiosos que protestam violentamente? Note-se que o “cineasta” foi preso por descumprir restrições do livramento condicional a que havia sido submetido e não em razão do filme.

De qualquer modo, quando dissociamos a liberdade do bom senso a coerção é acionada, seja pelo ofendido (na ordem da vingança privada), seja pelo Estado, na imposição de uma obrigação reparatória. No Brasil, o direito admite o cerceamento da liberdade de expressão, nos EUA a tradição jurídica não permite restringir a liberdade de livre-expressão.

Porém, quando há respingos na segurança pública, os casos ganham contorno de Razão de Estado e, de um modo ou de outro, por esta ou por aquela razão, acaba havendo perseguição pelo direito repressivo. Talvez o caso atual mais emblemático seja o do criador do site Wikileaks, caçado pelo mundo afora por ter divulgado ações criminosas do governo estadunidense.

Neste caso, a ordem de prisão e de extradição baseia-se em suposta acusação de crime sexual. É curioso como nos EUA alega-se não violar diretamente a liberdade, mas não se fazem de difíceis para aniquilar os principais institutos da Justiça ou os princípios do direito. É óbvio como o direito se submete ao poder. A principal liberdade está em entender esta relação entre direito e poder, mas a desigualdade na educação permite a quantos brasileiros perceberem esse fato essencial a sua vida?

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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