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Vinício Carrilho

Criminalização das relações sociais


O projeto de lei (PLS 676/2011) do senador Lobão Filho (PMDB-MA) considera como crime hediondo o desvio de verbas destinadas a programas de educação e saúde. Muitos já escreveram sobre a criminalização das relações sociais - aqui mesmo já disse algumas vezes que crimes cometidos por políticos que roubam dinheiro da saúde provocam a morte de centenas, milhares de pessoas. Porque o remédio, o procedimento, a contratação de pessoal, tudo isso não foi efetivado por causa imediata dos recursos desviados, roubados. Em razão disso, a criança e o idoso que precisavam se tratar com algum especialista simplesmente não puderam ser e tiveram suas vidas encurtadas ou o sofrimento alongado. Ou seja, são crimes que vitimam de modo difuso, coletivo grupos humanos determinados socialmente pela pobreza e miséria. O corrupto da saúde, seja o político seja o profissional da área, tem um impacto enorme em suas ações: pessoas são torturadas em dor e na doença que se agrava ou, mais exatamente, são levadas à morte.

Em paralelo, a corrupção da educação condena ao analfabetismo, à ignorância sem fim, porque o indivíduo é alijado, excluído da formação adequada do “pensamento abstrato”. Este pensamento nos leva a saber e a identificar os principais signos e códigos da vida social adulta. Assim, sem desenvolver a capacidade intelectual devidamente, o indivíduo se vê condenado ao anonimato, à indiferença, à menoridade eterna. Será um indivíduo tutelado pelo resto da vida, guiado na ignorância, uma vez que mais ignora do que compreende as coisas. Nunca terá uma profissão de destaque, uma formação sólida, um desempenho elogiável em sua atividade intelectual. Será uma criança crescida. Com isso, a sociedade toda é vítima do analfabetismo funcional, corriqueiro em razão do dinheiro público ter sido roubado.

Então, a questão é a seguinte: identificado o grave crime social, deve ele ser agravado em sua pena?

Por um lado, mais emotivo, é fácil responder que sim, pois o grave crime social (um quase crime contra a humanidade) deve ser punido como tal. Alguns dirão: qual a diferença entre matar crianças em uma guerra civil e, em tempos de paz, condená-las à morte com sofrimento por absoluta falta de médicos e de remédios? Por outro lado, o risco de vermos o Estado avançar continuamente, muitas vezes abusivamente na vida social e nas determinações da vida comum de todos nós, é mais do que considerável. Hoje, será a criminalização dos crimes contra a sociedade; amanhã será a criminalização do pensamento crítico contra o modelo social (contra os que criticam o “sistema”).

A crescente criminalização das relações sociais atende aos apelos sociais, traz gravame a outros tipos de crimes que não conhecíamos, a exemplo do racismo e da exploração do trabalho escravo que também seriam considerados crimes hediondos. No conjunto são crimes contra a razão, contra a razão de ser humano e, por isso, contra eles deve se voltar a Razão de Estado. Quem comete crimes dessa magnitude atenta contra a dignidade humana, contra a razão, contra a sociedade como um todo, logo, é um inimigo do Estado. Daí o agravamento das penas, a punição exemplar. A teoria de que se reveste esta visão de mundo é denominada de Direito Penal do Inimigo: literalmente, há um direito para os amigos e outro para os declarados inimigos. Quem define as duas categorias, é obvio, é quem detém o poder de Estado.

Esse direito em bifurcação, bilateral, bipolar, portanto, seria produto da própria Razão de Estado como medida punitiva para agir em nome de uma suposta defesa da razão humana, do que temos de mais humano. Seria uma espécie de “última ratio”, a razão afiada em defesa da inteligência social. O que ameaça a integridade social (racismo, trabalho escravo) deve ser excluído da categoria de humano, e por isso será tratado como inimigo social e de Estado.  Não seria diferente com o tráfico de pessoas e de órgãos? Ou com a exploração da prostituição sexual? Não há crime pior do que relegar alguém à condição de “escravo sexual”, especialmente se for criança ou os jovens sequestrados.

Vamos acabar com o tráfico de drogas, condenando todos a 40, 50 anos de prisão? O Direito Penal do Inimigo se voltará contra todas as formas de corrupção ativa e passiva, uma vez que se dirigem contra a sociedade? Mas também vamos enfiar em novos presídios na Amazônia todos os pedófilos, estupradores? Ou vamos prender apenas os grandes criminosos, como os mafiosos, os grandes corruptos e corruptores (empresários), os mega traficantes? Muitos são políticos com acesso privilegiado às hostes do poder e podem propor projetos de lei que os beneficie.

Em outro exemplo, basta lembrar que dez por cento da sociedade mundial respondem por um distúrbio psíquico gravíssimo e são conhecidos como “psicopatas”. Alguns desses matam, os assassinos em série; outros são empresários que sempre “pisaram no pescoço” da concorrência ou são os seus chefes sádicos, como senhor e capataz; muitos são os conhecidos políticos corruptos. Em comum, pode-se dizer que todos são indiferentes à “dor do Outro”, não importa se física ou moral, psíquica; o psicopata não tem sentimentos como remorso, culpa, não se vê no lugar de sua vítima. Mas, todos esses cometem crimes contra a sociedade? São criminosos ou são doentes? Vamos punir todos, prender alguns milhares? O que se diz é que não haveria penas e nem prisões suficientes em todo o mundo para enquadrar os chamados criminosos sociais.

Com a ação do Direito Penal do Inimigo, o fato gerador de todos os males continua latente ou é até estimulado. Na verdade, por que não perguntamos sobre outros modelos sociais e econômicos em que essas doenças ou crimes não são gerados ou ao menos são mitigados? Não se defende que venhamos a copiar essas formas, algumas pré-capitalistas, mas há muito que devemos aprender. Um pouco ou muito de anti-capitalismo nos faria muito bem; ao invés de inventarmos novos crimes, o melhor é impedir seu surgimento e isto não ocorrerá sem mudanças profundas.

É óbvio, de conhecimento médio, mas vale a pena reforçar que o direito não modifica a realidade de imediato, por si, e não tem força política para impor novos modelos sociais. O direito pode humanizar as relações sociais, procurando por meios sociais inclusivos, democráticos, que dê ênfase à tolerância, à dignidade. Todavia, impor ao direito que produza uma sociedade menos doente e corrompida na base dos valores econômicos e morais, isso é pedir demais. O direito não é revolucionário em si, pelo menos não como imaginamos, a curto prazo, atuando como santo remédio. O direito pode revolucionar as relações sociais a longo prazo, mas se houver participação coletiva e não por meio da letra fria da lei.

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

 

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