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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

AXIOMAS DO ESTADO MODERNO


Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]

 

            O texto traz axiomas, afirmações, quase-sentenças acerca do Estado – especialmente o Estado Moderno –, mas que requerem alguma reflexão. Se o axioma não se comprova, entretanto, merece um pensamento sobre suas conclusões.

  • O Estado é jus puniendi

(bellum omnium contra omnes[2])

  • O Estado é soberania

(Mas, “a soberania só reina sobre aquilo que consegue interiorizar”)

  • A preocupação do Estado é conservar

(a Razão de Estado luta pela autoconservação[3])

  • O Estado é um estrato[4]

(o Estado transforma o Nomos em Logos)

  • O Estado é um condutor

(condottiere[5])

  • O Estado é um regulamento

“Uma das tarefas fundamentais do Estado é estriar o espaço sobre o qual reina, ou utilizar os espaços lisos como um meio de comunicação a serviço de um espaço estriado” (Deleuze, 2005, p. 59).

  • O Estado soberano é o que detém o poder de exceção

 

No contratualismo de Hobbes o Nomos é um tipo de “contrato comprometedor”, um contrato em que todos se comprometem com objetivos similares,também se constitui da linguagem rumo ao direito: “O contrato é um diálogo, um logos trocado e compartilhado que, de fato, é transformado em nomos” (Angoulvent, 1996, p. 50).

Veremos, entretanto, que Nomos pode ter um significado diverso, na verdade, algo como o sedimento do mundo da vida, da vida comum do homem médio sobre o qual se constrói a cidade, a polis, o logos, a lex. Em termos antitéticos teríamos a seguinte construção: cidade – Polis – cultura – lei versus campo – Nomos – agricultura – costumes.

Em todo caso, ocontrato em Hobbes, é só um pacto unilateral, porque não tem a regra da bilateralidade da norma jurídica. Para o intérprete do Nomos da Terra, sob o absolutismo, todo poder emana do Estado e a ele voltará. O Estado Absoluto é o que garantirá, absolutamente, a salvaguarda necessária (seja qual for) de Nomos eLogos serão um só, assim como Estado e Direito são meio e fim em si mesmos. O soberano encontra um Nomos, como se a lei derivasse do espírito nacional, constituindo-se num direito pressuposto que corrobora a ação do poder (e este poder poderá ser de exceção, desde que se justifique os fins da Razão de Estado). Todo o poder a quem detém o poder.

O Nomos ainda implica em uma Ciência do Estado, como se a polis ainda encontra-se uma explicação racional, nomológica[6], perfeitamente concebível a partir da transformação do Nomos. Para Max Weber, Nomos também tem um significado preciso, como regra natural-racional. A sociologia para Weber é a ciência do saber nomológico ou que busca um saber nomológico (Nomos = regra, norma, regulamento de ação humana e de cunho social, da ação social). Assim, teríamos algumas possibilidades, a fim de compreender a sociologia como um sistema de regras de saber social, mas logicamente arquitetado: a) Sistema lógico de regras sociais; b) Sistema de regras lógicas vigentes; c) Sistema de saber lógico; d) Sistema de regras de saber lógico. Aplicando-se este sentido ao direito e à política, especialmente com Carl Schmitt, leitor e intérprete de Weber e da concepção de que o Estado (Moderno) exerce o monopólio legítimo da força física (violência), temos que o Poder Político é uma construção racional e que deve se verter em poder do controle social.

Pela nomologia de Max Weber, o Estado não é um estrato porque segue governado por uma parte, um estrato social, como estratocracia, mas sim porque uma parte pode administrar como se fosse o todo. O Estado não precisa se converter em estratocracia para se qualificar como soberano ou mesmo como estrato: “O Estado é a soberania. No entanto, a soberania só reina sobre aquilo que ela é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente [...] o Estado de fato é o devir da razão [...] O nomos é a consciência de um conjunto fluído: é nesse sentido que ele se opõe à lei, ou à polis, como o interior, um flanco de montanha ou a extensão vaga em torno de uma cidade (“ou bem nomos ou bem pólis[7]” (Deleuze, 2005, p. 23). Apascentar como administrar o todo, sendo uma parte, mas como se fosse o todo-representado e sem sucumbir às tentações de desviar o todo aos interesses da parte empoderada. Aliás, empoderamento implica em ação coletiva de poder.

É, portanto, no sentido expresso em que se associa política e força física (virilidade, em Maquiavel) que se constituirá o Nomos da Terra, como princípio ordenador do direito que sustenta e legitima o poder soberano do Estado Moderno. Nem o Estado, nem a lei violam a origem natural, nacional, racional em que se constituiu o poder – afinal, sempre teremos a famosa tríade de Povo + Território (Nomos) = Soberania (Logos).

A principal lei nos diz que o homem é sociável, portanto, toda lei que não violar este sentido natural à sociabilidade (Nomos)será lógica (Logos). Se o Estado é uma consequência desta regra, como escolha racional para melhor administrar os próprios meios de socialização, então, toda lei (lex) perpetrada pelo aparelho estatal (polis) será equivalente, em princípio, ao Nomos, como urstaat (o Estado de Origem, primordial, porque na origem está a sociabilidade). Por fim, trata-se de um Estado Primordial, essencial, porque sua função é manter as bases de sociabilidade elevadas, uma vez que, ele Estado já decorre dessa lei, como contrato global em que se erige um poder para tratar exatamente dos meios para arregimentar membros à obra social coletiva que corresponda à necessidade da socialização. O memorial do Estado traz uma história em comum; como legado da vida comum do homem médio, não há como dissolvê-los pois são um só[8].

O Nomos é a soberania (absolutista) que se enraiza

Entre os séculos XVI e XIX, há formação e declínio do que se denominou de "época interestatal do direito internacional". O resultado teórico e histórico do originário Estado-Nação, caminho igualmente percorrido pelo Estado Moderno, foi uma enorme concentração de poderes – um tipo de absolutismo institucionaldenominado de Estado de Polícia. Tratava-se de uma estrutura de Estado policialesca em que se vigiava não só a soberania, a vida pública, mas, sobretudo, a moral privada. Certamente, um germe do Estado Totalitário que vimos surgir no século XX na Europa. Trata-se de uma expressão criada pela historiografia indicando um fenômeno histórico e político preciso, circunstanciado e remonta aos historiadores constitucionais alemães da metade do século XIX. Já a origem epistemológica da palavra “polícia” vem do termo grego “politeia[9]” e do latim tardo-medieval “politia[10]”. Para Aristóteles, “politeia” significava a sua Constituição e para Santo Tomás de Aquino, o ordenamento global da vida humana. A importância operativa e sistêmica do termo polícia, pela ação estatal, só foi aparecer nos Estados da Renascença, na Itália e, principalmente, na França, no Ducado de Borgonha — momento em que a expressão implicava claros fins políticos e cumprimento dos deveres públicos e cívicos dos súditos. Da Borgonha passa para a Alemanha, obtendo aí difusão e grande sucesso, mas já não tinha mais a intenção de segurança na esfera pública:

Foi radicalmente diverso o papel desempenhado pela Polizei nos territórios alemães. Aqui ela tornou-se o instrumento de que se serviu o príncipe territorial para impor sua própria presença e autoridade contra as forças tradicionais da sociedade imperial [...] Na transição de uma estrutura constitucional formada tipicamente “por castas”, como a imperial do século XVI, para uma organização do poder concentrado em cada um dos Estados territoriais, como se verificou em alguns dos territórios alemães durante o século XVII, é fácil entender que o problema central para o príncipe territorial, que se apresentava historicamente como fulcro dessa passagem, fosse o da necessidade de criar para si um espaço autônomo, uma esfera soberana própria, tanto em relação ascendente como descendente (Bobbio, 2000).

 

Estado de Polícia, então, corresponde ao Estado Absoluto, controlado e regulado por leis, e mesmo que não sejam leis formuladas como expressão tácita da soberania popular. De qualquer forma serão leis, com preceito claro de que deverão ser cumpridas e mesmo que não sejam leis promulgadas, como entendemos atualmente. Vejamos mais uma vez como se deram as sucessivas passagens do Estado Medieval em Estado Moderno e deste para o Estado Absoluto (às margens do capitalismo efervescente):

A função histórica do Estado absoluto consiste em reconstruir (ou construir) a unidade do Estado e da sociedade, em passar de uma situação de divisão com privilégios das ordens (sucessores ou sucedâneos dos privilégios feudais) para uma situação de coesão nacional, com relativa igualdade de vínculos ao poder (ainda que na diversidade de direitos e deveres) [...] Sobretudo no século XVIII, a lei prevalece sobre o costume como fonte do Direito e esboça-se o movimento de codificação, reforça-se a justiça, consolida-se a função pública, criam-se exércitos nacionais e o Estado intervém em alguns setores até aí ignorados da cultura, da economia e da assistência social. Incrementa-se, entretanto, o capitalismo, primeiro comercial, depois industrial, e a burguesia revela-se o setor mais dinâmico da sociedade (Miranda, 2002, 44).

 

De certa forma, poderíamos chamar a isto de constitucionalização do Estado Moderno, ou de uma segunda fase do Estado Moderno (Estado Absoluto). Nesta fase, começa a ser erigida a concepção política de que o poder político do soberano deveria ser regulado. Porém, dadas as novas forças econômicas insurgentes (propriamente capitalistas), o Estado de Polícia acabou por se caracterizar como um Estado Absoluto impuro, ao mesmo tempo mais organizado, mas, mais flexível, menos-radical, mais-heterodoxo[11]. Não é à toa que se pensa esse processo político e econômico a partir do século XVII, depois da centralização de muitos Estados europeus, e quando já se encontravam em plena acumulação primitiva, expansão marítima e colonização, baseadas na extração de riquezas de outros povos e continentes. Tanto o mercado produtor (as colônias) quanto o mercado consumidor (a Europa) precisavam ser regulados, a fim de que se contivesse o processo de pilhagem e as guerras continentais. A esta altura, o domínio marítimo já fora melhor estabelecido e pouco tempo depois a Primeira Revolução Industrial revelaria toda a potência que vinha sendo gestada pela burguesia. Portanto, talvez esta fase final do absolutismo (segunda fase do Estado Moderno) pudesse ser apelidada de constitucionalização do capital. Mas, a Terra, literalmente, seria aberta à exploração e também por isso Bacon irá dizer que Saber é Poder, aquele conhecimento que explora as raízes mais profundas das substancias, dos recursos humanos. Em uma palavra: natureza. A tecnologia permitiria ao homem reencontrar a Terra, ressignificar a natureza, retomar a continuação da nomologia.

O Nomos da Terra

O Homem do Renascimento tomou para si a natureza, mas pela primeira vez assenhoreou-se da Terra, de todo o globo, inspecionando seus esconderijos. Esta era a base cognitiva de seu direito natural. No Renascimento, por Nomos,trata-se de um "direito da origem" e o estabelecimento de uma "ordem concreta”. A ideia de nomos tem um caráter espacial[12], fundacional. Não se limita à ideia de lei, pois se trata de: "ato originário que funda o direito [rechtbegründenden Ur-Aktes]’ (NE, 16). Esse ato de fundação se apresentaria sob a forma da ordenação de um espaço específico. Mais precisamente, trata-se de ‘um ato de ordenação e de localização, constituinte e espacialmente concreto" (NE, 47)[13].

Como ato originário que funda o direito, o Nomos interliga direito e espaço. É a medida que funda os demais critérios de medida subsequentes. O Nomos da Terra, como direito internacional, é o princípio fundamental de distribuição do espaço na Terra (o que, certamente, remete à soberania, como forma assegurada, pacientada de se ocupar e sedimentar o Poder em determinado território: de forma unívoca, inequívoca). Nomos da Terra é constituição e parcelamento de terra e sua ordenação fundamental. Se é certo que se trata da delimitação territorial, como referencial do Povo, é igualmente correto pensar que o Renascimento redistribuiu a Terra, de acordo com o direito de soberania dos Estados Absolutos. É como se dissesse que a colonização fosse autorizada pelos critérios fundacionais do Nomos da Terra.

Outra conclusão lógica é que o Estado Absoluto autoriza um poder absoluto – até mesmo porque não há soberania que não seja absoluta. O poder de exceção, portanto, seria um tipo de redundância, uma vez que não se tem exceção (tudo será regra) onde o Estado detém o monopólio legislativo sobre o uso da força. Ou, mais especificamente, porque o Estado age em nome de um sentido e significa maiores: a autoconservação do povo no território delimitado (Nomos soberano).

Assim, o Estado Absoluto surgiu como um constructo: construção racional e nacional. O Estado é esta clara aliança entre Logos e Nomos, num claro processo de desencantamento do mundo em que se articulam política, linguagem e direito[14]. Por isso, para Hobbes, Weber e Carl Schmitt, o Leviatã é o guardião da liberdade, do direito natural que deve legitimar toda forma de controle social necessária à contenção do povo em seu determinado território e como salvaguarda contra ações externas. O Estado Moderno soube capitalizar o Nomos, legitimando a exploração (interna e externa) a colonização como se derivassem de um direito atávico.

 

Bibliografia

ANGOULVENT, Anne-Laure. Hobbes e a moral política. Campinas-SP : Papirus, 1996.

BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 4ª Ed. Rio de Janeiro : Ediouro, 2000b.

DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. V. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo : Ed. 34, 2003.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I. 3ª ed. Coimbra-Portugal : Coimbra Editora, 2000.

SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte : Del Rey, 2006.

 



[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.

[2]Guerra de todos contra todos.

[3]Toda luta pela autoconservação é uma luta política (Honneth, 2003).

[4]Estratocracia (stratus = militar). Mas, o governo do Poder Político, como estrato, não precisa necessariamente se amoldar ao manu militari, como governo militar versus governo civil.

[5]Historicamente, nas origens da máfia siciliana, designava-se condottiere como o chefe, o capo, da malta de mafiosos ou líder de grupo de soldados mercenários. De certo modo, é esta verificação que levou a designarmos, no Brasil, de Estado Paralelo.

[6]A Humanidade tem regras inerentes, imanentes, lógicas que desembocariam na escolha e no desenvolvimento racional da forma-Estado.

[7]Depois, na nota 44: “Apascentar (nemô) não remete a partilhar, mas a dispor aqui e ali, distribuir os animais. Somente a partir de Sólon, Nomos vai designar o princípio das leis e do direito (Thesmoi e Dike), para depois ser identificado às próprias leis. Numa época anterior, há antes uma alternativa entre a cidade, ou polis, regida pelas leis, e os arredores como lugar do nomos [...] nomos não é cidade, mas campo pré-urbano, platô, estepe, montanha ou deserto” (Deleuze, 2005, p. 52).

[8]“Os Estados sempre têm a mesma composição; se há uma verdade na filosofia política de Hegel, é que ‘todo Estado contém em si os momentos essenciais de sua existência” (Deleuze, 2005. p. 58). O que é essencial ao Estado é essencial a seu povo, o que é logos em uma ponta é nomos na outra.

[9]Como Constituição de direitos representativos de uma polis ou instrumento organizador das leis e dos fundamentos constitutivos dessa polis.

[10]Muitas polícias são ainda chamadas de politia.

[11]Já sabemos que o Nomos é visceral, radical por definição, pois é lógico o poder que não abdica de suas instituições, é legítimo o Poder Político que contempla suas fundações, que se “enraíza” na motivação originária, que volta ás raízes.

[12]O que indica, razoavelmente, a possibilidade de fixação do território, na conhecida trilogia de Povo, Território e Soberania.

[13]http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2008000200004.

[14]O que agrada ao soberano tem força de lei. O Leviatã é o “medo construído” e o Absolutismo aparece como uma teoria do direito à opressão da liberdade natural para se constituir em liberdade civil. Só há legitimidade onde há soberania estatal e esta vela pela “segurança” da vida civil (uma das promessas do Estado Moderno descumpridas na atualidade).

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