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Vinício Carrilho

Avaliação para o Ano Novo


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Normalmente, terminamos o ano fazendo avaliações, o que conseguimos, as metas alteradas, as frustrações, os sonhos e as projeções. Pois bem, o cidadão mediano se auto avalia constantemente, bem como é avaliado no trabalho, na escola, na família, pelos amigos e inimigos. Bacharéis em direito são avaliados no famoso exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para se metamorfosearem em advogados. Apenas com esta aprovação e um exercício profissional comprovado, sequencialmente, é que poderão fazer outros concursos, como magistratura. Até os políticos são avaliados, na época das eleições, e muitos são reprovados.

Então, por que só os formandos em medicina não são? Na verdade, não são avaliados para valer, ainda é um faz de conta, mas que já aterroriza a todos. A prova que os alunos formandos em medicina realizam não reprova, apenas diz se, moralmente, estes poderiam ou não ser considerados médicos. O exame da OAB reprova mesmo, se não passar não recebe a carteira profissional. Na medicina, a avaliação é um simples indicativo de como vai a saúde intelectual dos futuros médicos.

Mesmo não reprovando, a avaliação conduzida pelo Conselho Regional de Medicina (CREMESP) é assustadora, porque 54,5% dos alunos presentes não acertaram sequer 60% das questões objetivas, de múltipla escolha, em 21012. Levando-se em conta, para agravar nosso risco, que eram testes de baixa e média complexidade. Os pretensos médicos, os reprovados moralmente, não sabiam, dentre outras coisas, quais as vacinas obrigatórias e, pasme a dona de casa, como tratar de diarreia de criança. Não sabiam o básico sobre saúde pública, clínica médica, saúde mental, ginecologia, pediatria.

É difícil comparar áreas tão diferentes, mas penso que equivale ao aluno de primeiro ano do direito que não sabe definir o que é o Estado Juiz, quais as fontes do direito (inclusive porque descritas em lei), de que modo a demanda social é transformada, por meio do processo legislativo, em direito positivo. Há mesmo alguns que não sabem detalhar o que é Estado de Direito: uma espécie de anatomia jurídica do mundo moderno. Muitos não se dedicam aos direitos humanos, como o direito à saúde pública, por uma estranha convicção retrógrada. Porém, mesmo sendo grave esta situação, esses tipos não seriam aprovados no exame da OAB.

Agora, em medicina, um erro crasso desse porte certamente levaria o paciente a óbito e é exatamente isso que temos visto acontecer pelo Brasil afora. Mas, o pior é que os aprovados no topo da avaliação vão às clínicas particulares. Na medicina, via de regra, descontadas as exceções que não interessam, os melhores aprovados provém das universidades públicas, sejam federais ou estaduais, e os nem sempre destacados acabam no serviço público. Assim, o dinheiro público – novamente – serve para financiar as economias privadas.

Particularmente, defendo que áreas como pedagogia, medicina, direito, engenharia, psicologia e outras deveriam ter um exame nacional no final do curso. Sem a aprovação final, o estudante não teria o direito de exercer a atividade profissional. Isto se deve, é claro, pela baixa qualidade da educação nacional e se houvesse uma presença mais destacada do Ministério da Educação o exame não seria necessário.

Em todo caso, no Brasil do presente, penso ainda que todo aluno de universidade pública deveria ter um período probatório de no mínimo um ano, em que prestasse serviço público gratuito, no interior ou em regiões afastadas do país, e sendo mantido por uma bolsa condizente. A bolsa seria escalonada de acordo com as necessidades regionais e os mais bem aprovados escolheriam primeiro onde gostariam de estagiar, em qual região ou rincão.

Esse estágio social obrigatório seria uma forma de devolver ao povo o financiamento que este acadêmico recebeu em sua formação intelectual/profissional. Seria uma forma das elites econômicas conhecerem a cultura dos pobres do Brasil. Seria uma forma de obrigar ao reconhecimento do Outro, de suas diferenças e fragilidades – ao aproximar as diferenças, reconhece-se a dificuldade da integração. As elites econômicas e culturais precisam reconhecer as imensas dificuldades e desigualdades que nos tornam dois países que não se sustentam com a mesma dignidade.

Fora o período pré-vestibular, também fui aluno de escola pública e, posteriormente, de universidade pública. Com exceção do curso de direito, da graduação ao pós-doutorado sempre fui privilegiado e pude estudar nas melhores universidades públicas brasileiras. Sem o benemérito da sociedade, sem que pudesse contar com o dinheiro público, não teria recebido a formação que tenho. Hoje trabalho em universidade pública federal.

Pela soma dos fatores, pelo conjunto da obra – como se diz –, é que defendo um estágio social obrigatório aos formandos de todo e qualquer curso de universidade pública. Um ano sabático de trabalho comunitário. Penso assim desde que era acadêmico, embalando-me por notícias que vinham da educação pública socialista de Cuba. Ainda hoje, teríamos muito a aprender com as experiências socialistas e uma delas é respeitar o princípio republicano.

Todos os “privilegiados” têm o dever moral, fático, de prestar contas à sociedade que os manteve a custa de muito trabalhado alheio. A educação recebida ou não está na base da dignidade de todos nós. Portanto, devolver um pouco da educação que recebemos é colaborar com a dignidade social. É assim que se faz a República. A República é objetiva. Nossa falta de compromisso ou falsa interpretação é que são subjetivas. A vida das pessoas, sua dignidade, responsabilidade por seu futuro, tudo isso é objetivo demais para ser confundido com interesses corporativos, classistas, narcisistas. A vida de ninguém pode depender da mediocridade. A República é isso, sem exceção, sem meio-termo, sem paliativos ou curativos de placebos.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia

Departamento de Ciências Jurídicas

Doutor pela Universidade de São Paulo

 

 

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