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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Atentado à democracia


A corrupção é a prostituta da política

 

Apenas no concerto da política

é que se conserta a política

 

Na guerra de turba a única isonomia

é o cheiro podre da morte

 

Sou crítico de tudo, menos do bom senso.

Por causa disso, acredito que os vândalos e a depredação, o atentado à integridade física e moral dos cidadãos e dos policiais não fortalece a democracia. Quebrar a cabeça das pessoas, em revoltas pacíficas, não fortalece a cidadania.

Sob o mesmo efeito da violação da democracia, vemos candidatos a qualquer cargo público, ainda que não eleitos, sendo “enquadrados” por jovens ignorantes de sua própria força política. Se não ignorassem esta lógica simples saberiam que a política se conserta com mais política – aliás, a política que o povo acabou por afastar de si, quando vendeu votos – e não com a negação da política. Na aritmética do poder popular:

  • política + política = Política.

Todos sabem, mas nunca é demais lembrar que confundir partidarismo com atividade política é a essência do fascismo, pois, aniquilando-se os partidos políticos, o Estado Fascista julga anular os efeitos da política. Por algum tempo isso dá resultados, uma vez que o povo se “enquadra” nas hostes do poder, mas como a história é perversa, com ou sem ajuda externa, as cabeças acabam rolando (com a de Mussolini, na Itália da 2ª Grande Guerra).

Como nos ensina o filólogo Umberto Eco, para criticar a política não podemos afastar-nos da política, mas é preciso muita reflexão. No Proto-Fascismo, pulsa no peito da massa à espera do salvador um medo atávico:

O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão [...] Não há luta pela vida, mas antes vida para a luta [...] Há um elitismo popular, populista, que faz as massas sonharem com o poder [...] Nessa perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Esse culto do heroísmo está estreitamente ligado ao culto da morte, não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte (Eco, 1998, p 43 e ss.)[1].

 

É óbvio, mas vamos lá: apenas no concerto da política é que se conserta a política.

A ira também é péssima substituta da política, assim como a corrupção é a prostituta da política; pouco importa se a indignação provém dos detentores do poder ou se é uma reação de turba, na plena rebelião das massas, o resultado é o mesmo. Robespierre e os jacobinos foram punidos pela mesma massa sedenta por sangue. Esses chamados seguidores de Hobbes, pois que lutavam com o preço da vida para ter uma vida melhor (diga-se, a modernidade) logo veriam que, em franca guerra civil, a morte era amiga de todos.

Foi nas profundezas do submundo intelectual que esses homens se tornaram revolucionários: ali nasceu a determinação jacobina de exterminar a aristocracia do pensamento [...] O mundo dos subliteratos não tinha princípios; tampouco alguma instituição de tipo formal. Era um universo de gente à deriva — nada de cavalheirescos discípulos de Locke resignados às regras de algum jogo implícito, mas brutos partidários de Hobbes colhidos em meio à briga pela sobrevivência. Isso não ficava a menor distância de le monde que o café do salon (Darnton, 1987, pp. 31-33).

 

Na guerra de turba a única isonomia é o cheiro podre da morte que nos contamina, à medida em que se nega todo e qualquer direito difuso. Difunde-se a morte para mitigar o direito. Por falar nisso, o povo tem todo o direito de se insurgir contra a corrupção, a prostituição da política, mas é preciso saber que não vamos promover a tomada da Bastilha e nem se aplica a práxis da Revolução Russa de 1917. Como não estamos entre O Estado e a Revolução, de Lênin, é preciso não descuidar do “esquerdismo, doença infantil do comunismo”.

Não se confunda golpe institucional com revolução; não vamos simplificar o desgosto com ostracismo político e o oficialismo nacional com o sentimento de turba: na famosa psicologia de massas do fascismo ninguém ganha nada. Só perderemos a vergonha, a inteligência e a chance de fazer história. Não se aplica nesse caso das rebeliões populares no Brasil o chamado direito à revolução e, se isto é verdade, a ordem jurídica democrática deve ser defendida e, se a ordem constitucional ainda predomina – com legitimidade – atentar contra a democracia é crime e grave violação dos direitos fundamentais. O artigo 5º, XLIV: “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” (in verbis, grifos nossos). Portanto, o espírito publicista da Multidão não coaduna com o atentado à democracia.

Aprendemos a política ora fazendo ora estudando o seu significado e alcance conceitual, mas isto deve estar sob uma lógica: liberdade; reflexão; consciência; livre expressão; ação. Toda ação política é uma expressão política, no entanto, a ação mais efetiva é a da militância, aquela ação que alimenta outras reflexões e consciências da responsabilidade política. O que ainda esquecemos é que não há ação desprovida de alguma reflexão, mesmo que seja superficial, maquiada, insuficiente. Não há ação sem teoria; mesmo a teoria que precisa ser corrigida ou adequada à realidade é indutora de uma visão sobre a política.  

Em suma, a corrupção é a prostituta da política, mas que boa essa democracia que nos deixa pensar e falar sobre isso.

 

Bibliografia

DARNTON, Robert. Boemia Literária e Revolução: o submundo das letras no antigo regime. São Paulo : Companhia das Letras, 1987.

ECO, U. Cinco escritos morais. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

LÊNIN, V. I. O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec, 1986.

                                                                                                                 Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO

Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ

Pós-Doutor Educação e em Ciências Sociais

Doutor pela Universidade de São Paulo

 



[1]A citação das análises de Umberto Eco (1998) não é literal, mas o leitor encontra sua posição descrita completamente às páginas 43 e seguintes do referido livro.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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