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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

As Teorias do Estado e a Modernidade Tardia


Vinício Carrilho Martinez[1]

As Teorias do Estado e a Modernidade Tardia - Gente de Opinião

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RESUMO: O artigo é ensaístico e seu objetivo geral é indicar alguns aspectos do pluralismo político-jurídico enumerados como essenciais à formação do Estado Democrático de Direito Internacional. O texto se alinha às Teorias do Estado em sua contemporaneidade – aqui denominada de Modernidade Tardia. O desafio posto exige a superação do individualismo jurídico e o revigoramento das concepções sociais do direito. Uma conclusão geral indica a necessidade de superação dos padrões atuais do pragmatismo, do formalismo e do monismo jurídico. Pois, trata-se de rearticular o debate epistemológico da firmação e do reconhecimento do Outro, sobretudo, diante de alguns institutos jurídicos da exceção.

Palavras-chave: Modernidade Tardia; Teorias do Estado; Pluralismo Político-Jurídico; Direito a ter direitos; Reciprocidade Intercultural.

O pluralismo político-jurídico, diante da temática soberana às Teorias do Estado – a Luta por Conservação da Razão de Estado –, congrega a Luta por Reconhecimento e, em especial, a reflexão sobre a existência no Mundo da Vida. Portanto, trata-se de recompor o direito à vida. Por isso, o pluralismo político-jurídico requer um redimensionamento das Teorias do Estado habituadas à análise limitada à soberania da Razão de Estado.

Este é um dos desafios colocados nesta atual fase da Modernidade Tardia, também denominada crise de civilização, em que a reformulação do Estado de Direito exige a recomposição da cultura como elemento social integrador. No Brasil, o embate entre o individualismo jurídico e a chamada Coletivização dos Conflitos foi precedida por uma reviravolta política: a politização das lides.

A sensação da crise, amplamente reconhecida por quem ainda se indigna com a injustiça social, no plano jurídico, remete à certeza de que vigora uma apreensão alienada, niilista, mesquinha do direito. A compreensão social do direito requer, sem dúvida, uma (re)abertura ontológica do ser para o Mundo da Vida, superando-se as desigualdades jurídicas.

Para efeito didático, o texto está dividido em quatro partes: 1) As Teorias do Estado e o Pluralismo Político-Jurídico; 2) O Direito se desvencilha da liberdade e da política; 3) Há muito mais entre o certo e o errado; 4) Haberle: Direito e Reciprocidade Intercultural.

 

  1. As Teorias do Estado e o Pluralismo Político-Jurídico

 
A história do Estado-Nação não ultrapassou, até o momento, este liame/limite restrito entre os cidadãos e a Razão de Estado: o indivíduo se identifica política e juridicamente por meio do Estado. Para o objetivo maior esperado à identidade cultural, política e jurídica, inerente ao Estado Democrático de Direito Internacional, é preciso que se considere a cultura comum, a consciência alongada para o Outro e o reconhecimento.

No sentido tradicional, os paradigmas positivistas do Estado impedem uma concepção cosmopolita para o direito – o que também restringe o pluralismo político-jurídico requerido pelas relações internacionais. A consciência pública internacional permite a percepção global de que o Estado e o direito têm, obviamente, uma dimensão político-jurídica; mas, igualmente fundante, é necessário frisar sua dimensão histórico-cultural.

Desse modo, requer-se um sistema político-jurídico multinível, multiator, cooperativo – com lastro na perspectiva do Estado Democrático de Direito Internacional –, que seja referência aos Estados nacionais quanto à vinculação regional, cultural e antropológica (Teixeira, 2011).

            Este “novo” contexto deverá se abastecer da diversidade cultural, a fim de que a concepção de cultura política seja apropriada pelos agentes públicos (juristas em especial). Isto depende da posição, do status, da inserção do sujeito de direitos e do seu desejo de se distinguir de si mesmo e assim afirmar sua identidade cultural. Sem isto, a concepção de Humanidade não será mais do que uma abstração, sem algum constructo político em que se apoie o Mundo da Cultura e capaz de dialogar com a diversidade imposta pelo pluralismo político-jurídico.

O Estado Democrático de Direito Internacional requer a criação de instâncias, instituições, estruturas administrativas e político-participativas que se referendem por meio do reconhecimento das (a)diversidades culturais e do pluralismo político-jurídico. Este reconhecimento pode/deve ser obtido por meio da criação de mecanismos de mediação.

Os mecanismos de mediação entre o institucional (político-jurídico) e a cidadania (cultura e sociedade) precisam ser implementados/agilizados. O reconhecimento do Outro – para além do “em-si-mesmo”, ensimesmado, provinciano, caipira – impõe-se como verbo de voz ativa e passiva: reconhecer e ser reconhecido. Desse modo, o reconhecimento pautado no pluralismo ainda seria um desafio posto à globalização.

A reciprocidade, como princípio jurídico e ação prática da cultura política, professa valores-direitos iguais em termos de dignidade, liberdade e autonomia. A autonomia que é inerente à ação política agora se ocupa da cultura, na formação de uma consciência pública internacional. Afinal, guardadas as proporções, as limitações impostas pela alegada sobrevivência da Razão de Estado são sentidas em todo o globo e, ao reverso, nem sempre se faz atuante na mesma medida a intervenção do pluralismo vertido pelas relações culturais.

O pluralismo político-jurídico ainda traz o desafio de uma síntese integradora entre identidade, cultura, direito e instituições políticas e estatais. Por fim, o reconhecimento cultural tem implicação distinta na formulação do pluralismo político-jurídico, ao promover uma “visão cognitiva da igualdade universal” como sujeitos de direito e zoon politikon.

O tema reflete uma mudança profunda, radical, na raiz do problema cultural, jurídico e político. Neste caso, pode-se falar com acerto que seria uma mudança de paradigma, pois as principais instituições não trocariam apenas de roupa, mas sim de pele. Aliás, diz-se que a cultura é nossa segunda pele. Portanto, mudar a pele da instituição é modificar sua base de inserção cultural.

Com isto, vemos que nossa pele jurídico-institucional está longe dos objetivos maiores traçados ao longo da Luta pelo Direito. Nossos desafios são enormes, mas de resultados gratificantes para o povo, se, e somente se, conseguirmos construir esta concepção republicana do direito.

Trata-se de fundar um Estado de Direito que considere a cultura em sua base de legalidade, pois do contrário o legalismo instrumentalizado por um Poder Judiciário seletivo, míope, conservador, não alcança a legitimidade mínima. Sem o reconhecimento óbvio de que a cultura faz o direito ser o que é, a lei continua distante/indiferente ao maior objetivo do próprio direito – e que deveria ser a Justiça.

É curioso – às vezes bastante assombroso de nossa ignorância jurídica –, mas é preciso dizer com letras claras que não há legalidade sem a observação do pluralismo político-jurídico. Trata-se, como vemos, de um reconhecimento muito além do formal, institucional, ou seja, de um reconhecimento cognitivo, epistemológico. Afinal, sem reconhecer o pluralismo jurídico há, na melhor definição, um conjunto legal, um ordenamento frio, classista, excludente e, exatamente por isso, injusto. Hoje reconhecemos apenas fragmentos da modernidade e dos seus postulados tidos como naturais à sociabilidade e integridade da cidadania – esta sendo assegurada pelo direito.

 

2. O Direito se desvencilha da liberdade e da política

            Na Modernidade Tardia, que se pode entender desde a formação da Razão de Estado e do direito moderno, no Renascimento, o mundo da cultura está distante do direito. Nada parece mais estranho. Porém, ao contrário do que aprendemos nos manuais, de modo realista, há uma seletividade que opõe cultura e direito. Como exemplo, basta verificar que os direitos humanos não fazem parte da realidade e nem do imaginário da maioria das pessoas.

O individualismo, ao separar homem e natureza, também resultou na separação entre o bem, a verdade e a justiça, produzindo-se um abismo entre o ser e o dever-ser. O que é valorado decorre da vontade arbitrária dos indivíduos (Mora, 2001).

            Em certo sentido, parece uma contradição, pois há um apego grande à liberdade. Contudo, só parece contraditório, porque a liberdade posta em cena se resume ao indivíduo, a seu individualismo. Liberdade sexual, para consumir e uma estranha requisição para ser livre de tudo e de todos: uma suposta liberdade para não contrair responsabilidades e cumprir obrigações.

            A história nos mostra que isto é impossível, mas as próprias lições da história estão em xeque, desde a crise de civilização anunciada pela pós-modernidade. O “sujeito de direitos” alega ser livre (e luta) para não ter responsabilidades coletivas. Invoca-se o direito de não se responsabilizar pelo Outro. Mais curioso é que se apregoa uma liberdade sem real amparo no direito, porque o direito – como norma ou regra – é social por definição. O direito é social porque é motivado pelas demandas sociais e não apenas em razão de ter seus efeitos generalizados – como efeito erga omnes (“contra todos os homens”).

Pela lógica, o direito não pode negar a si mesmo ou, mais obviamente, negar o social. Logo, o indivíduo não pode se escorar no alegado “direito de não ter responsabilidades sociais”. Todavia, o individualismo jurídico opõe em contradição indissolúvel direito e liberdade. O direito que obriga à socialização e a liberdade de se furtar dos compromissos e das responsabilidades comuns. Nesta estranha lógica da exceção, em que vigora o Eu-mesmo, direito e política andam dissociados, divorciando-se a ação política da deliberação jurídica.

Temos uma nova cidadania em surgimento e que não compreendemos em profundidade, ao negar postulados milenares como o de que o direito não pode se voltar contra a sociedade. Contudo, e aqui há outra faceta da contradição, vemos que isto é possível por meio da criação de uma lógica da exceção, geradora de um direito de exceção, que celebra privilégios (privi legem = leis privadas) com força de lei (Martinez, 2010).

O que deveria ser excepcional, como último recurso de regulação, acaba por ser regularizado, tido como “normal”, e assim se “normaliza” (impõe-se como norma e regra) a normativa que, desde a origem, é de uso irregular, extemporâneo. É esta normalização do excepcional, da exceção, que irá justificar a liberdade liberal expedida pelo individualismo jurídico. Por isso, nada mais contrário à sociabilidade.

De todo modo, é óbvio que não pode haver garantia social para esta noção liberal de liberdade. Seria o equivalente ao Estado – por meio de regras jurídicas, do direito – atestar concessão ao indivíduo para não ser sociável. Como se o indivíduo não mais fosse responsável pela política – lembrando-se que é por iniciativa da política que se matura o direito, dentro e fora do Poder Legislativo.

Mas, também na relação entre direito e política há uma reviravolta no senso que abriga o homem médio. De fato, com a política, ocorre algo semelhante ao “direito de se desobrigar dos outros”, uma vez que o indivíduo só reconhece a obrigação de pagar impostos e de votar (esta questionável, pois eminentemente política). Em troca, esperar poder abster-se da reflexão e da ação política, pelo simples fato de que pensar/agir implica responsabilidades. Ao abandonar o espaço público, o “sujeito de direitos” troca de lugar com os tecnocratas da política.

O resultado é que o indivíduo abdica de si mesmo; por força do individualismo jurídico, o suposto “sujeito de direitos” não é mais o protagonista da política e, por via direta, repudia o fórum do direito, uma vez que o direito é resultado imediato do embate das forças políticas.

O “sujeito de direitos” acredita, ingenuamente, que não precisa ser o zoon politikon. Para se sentir livre das obrigações e responsabilidades sociais, o indivíduo negocia, barganha com seu algoz e relega sua essência a segundo plano. Como faz o Zé Ninguém (Reich), mantendo a vã expectativa do direito, sem se responsabilizar politicamente na Luta pelo Direito. Neste sentido, pode-se dizer que não dá para ver os outros onde só vigora o nada, ou quase-nada.

De tal modo que, com a política estranhamente indiferente ao indivíduo, o espaço público – tradicional fórum de mediação e de produção jurídica – produz direitos que não são sociais na sua origem. Portanto, este direito é excludente (do próprio sujeito que se julgava detentor) e assim se flagra uma evidente exceção. Desconectando-se do Outro – do nós –, o indivíduo não se afirma como sujeito de direitos, uma vez que, para ser sujeito e não ser sujeitado, não pode abdicar do direito à política, do direito de fazer política, do Direito a ter direitos.

Nesta estranha lógica, o individualismo jurídico forja uma noção de liberdade em que o direito se revela como produto de excepcionalismo, dado que apenas excepcionalmente o direito seria produto social e resultado da ação política dos sujeitos de direitos. Opondo-se a liberdade individual à responsabilidade social, o individualismo jurídico retira direitos do indivíduo, garante privilégios como direitos de exceção, restringe a liberdade política e anula o espaço público como fermento social inerente ao sujeito político.

Adentramos, em suma, ao contexto do pós-modernismo jurídico, com suas críticas ao estado de injustiças e promessas descumpridas pelo direito iluminista. Contudo, além das críticas bem-formuladas, herdamos as excepcionalidades e a indiferença que crescem como voçoroca jurídica incontrolável. Entre outros tantos desperdícios, abdicamos da prudência política apregoada pelos clássicos – visto que a velocidade requerida às soluções imediatistas não se compraz com o tempo de repouso requerido pela prudência (Martinez, 2011).

 
3. Há muito mais entre o certo e o errado

Mas o pós-moderno estaria limitado ao individualismo jurídico? Parece que a resposta é mais complexa do que um simples sim ou não:

O pós-moderno sem dúvida traz ambiguidades — aliás é feito delas e deve ser criticado e superado. É isso que ele propõe: a prudência como método[2], a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite [...] O anseio de uma justiça que possa ser sensível ao pequeno, ao incompleto, ao múltiplo, à condição de irredutível diferença que marca a materialidade de cada elemento da natureza, de cada ser humano, de cada comunidade, de cada circunstância, ao contrário dos que nos ensinam a metafísica e o positivismo oficiais [...] Creio que já seria uma vantagem e um alívio que o pós-moderno se apresente como um castelo de areia e não mais como uma nova Bastilha, um novo Reichstag, um novo Kremlin, um novo Capitólio. Apenas um castelo de areia, frágil, inconsistente, provisório, tal como todo ser humano. Um enigma que não merece a violência de ser decifrado (Sevcenko, 1987, pp. 54-55 – grifos nossos).

 

O projeto arquitetônico da pós-modernidade, ao expor a estrutura e o interior, as amarrações, o liame do “eixo central” de sustentação, revelando aos observadores, as armações em aço e o conteúdo mais simples e operacional[3], como é o caso do elevador panorâmico, na verdade, promoveu uma revolução em termos de leitura do real — não era, portanto, um mero efeito de embelezamento.

Ao revelar a estrutura de suporte das construções, o projeto pós-moderno dizia ao leitor do real que a essência (assim como a estrutura) pode e deve ser vista, revista, revirada. É interessante notar como forma e conteúdo devem vir associados a partir de então, bem como outrora, na modernidade clássica apareciam em destaque os primos gêmeos da essência e da aparência.

Na configuração atual da sociedade moderna, entretanto, a sociedade de controle impõe ao cidadão cada vez mais o toque de recolher[4]que o obriga a ver-se cada vez mais longe de sua liberdade. Na prática, ao revés do Estado de Bem-Estar, edificou-se um Estado Penal (Wacquant, 2003), com a crescente militarização das relações sociais – além de revelar que o direito não ultrapassa as barreiras pré-humanistas da punibilidade como mero controle social (Santos, 2009).

Certamente, não como criação pós-moderna (no fundo é mais uma das muitas criações do liberalismo burguês), o Estado de Exceção[5]tem sido constantemente agilizado (contra a liberdade) como arma para se opor aos crescentes atos de rebeldia e/ou ao terrorismo (sem que ninguém fale de terrorismo de Estado). De outro modo, a guerrilha virtual leva um número crescente de países livres a adotarem formas de controle do mundo virtual[6], isto é, na sociedade de controle, mudam-se as formas de ação, mas o controle sobre o mundo real/virtual é muito intenso[7].

O que ainda nos permite concluir que as características centrais da pós-modernidade — a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite — têm sido cada vez mais compelidas para fora da realidade observável. Portanto, o entorno desta pós-modernidade se revela recrudescido, empedernido, emparedado, embrutecido: é incrível, mas talvez a pós-modernidade esteja mais sob ameaça do que a própria segurança e regularidade (ordem e progresso) do mundo moderno e de suas utopias.

Por essas razões, pretendemos entender como o entorno desse quadro sócio-metabólico desafia os antigos paradigmas da Sociedade Capitalista e as tradições da modernidade[8], além da própria pós-modernidade — em parte, ao menos inicialmente, esta série de desafios teve inicio com a própria pós-modernidade, mas também há a somatória de um outro perfil, agora da sociedade de controle, de seus entraves, “entranhamentos” e estranhamentos.

Outro ponto curioso nesta relação entre a irracionalidade moderna (as contradições inerentes ao capitalismo) e a irracionalidade descontínua da pós-modernidade (como vimos, o castelo de areia) advém da própria compreensão que Weber realizava da racionalidade moderna (a previsibilidade de fatores previsíveis da vida social):

A conduta humana, afirmava Weber, era tão previsível quanto os eventos do mundo natural: “A previsibilidade’ (Berenchnenbarkeit) dos ‘processos da natureza’, tal qual na esfera das previsões metereológicas, é muito menos acertada do que o cálculo das ações de alguém conhecido por nós”. Essa “irracionalidade” (no sentido de que a “vontade livre” = “incalculabilidade”) não era de forma alguma um componente específico da conduta humana: pelo contrário, essa irracionalidade, concluiu Weber, era “anormal”, na medida em que se constituía em propriedade do comportamento daqueles indivíduos que eram designados como “insanos”. Era, portanto, uma falácia supor que as ações humanas não pudessem ser tratadas por generalizações; na verdade, a vida social dependia de regularidades na conduta humana, de tal forma que um indivíduo pudesse calcular as respostas prováveis de outro em relação à sua própria ação [...] isso não implicava que as ações humanas pudessem ser tratadas [...] como fenômenos objetivos [...] A ação teria um conteúdo “subjetivo” não compartilhado pelo mundo da natureza, e a apreensão do sentido das ações de um ator era essencial para a explicação das regularidades discerníveis na conduta humana (Giddens, 1998, pp. 52-53).

 


            A irracionalidade e o descontínuo que sentimos hoje, de modo tão agudo e que nos deixa perplexos, é equivalente à profecia de Marx no Manifesto (1993), de que tudo que é sólido desmanchano ar, mas com tal grandeza e profundidade que, às vezes, sentimo-nos aniquilados em meio à pura barbárie. Ou como diria Weber, notadamente em A Política como Vocação, a descrença só não abate aqueles que perduram no caminho clássico de sua própria vocação:

Somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido ou demasiado mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “Apesar de tudo!” tem a vocação para a política (Weber, 1979, p. 153).

 

Neste sentido, esta angústia que sentimos, por estarmos em meio à indefinição do moderno e do pós-moderno — entre a certeza e o indesejável, entre a leveza e a sofreguidão, entreo cristal e a fumaça, entre o robusto e o que se desmancha no ar —, é que dizemos que só sobreviverão os que têm vocação (não como predestinados), mas como persistentes, esforçados, radicais, renitentes até: clássicos, portanto. Estes terão vocação para a vida social.

Porém, é em meio a esta profusão de dados, de sentimentos, de sensações, de emoções, de estranhamento sócio-ambiental, que ainda se movimenta o homem social de hoje, um homem social e muitas vezes não-político, no sentido da ágora dos gregos antigos. O Homem-político de hoje perdeu seu ethos e seu utopos (sem lugar), em virtude de ter-se ampliado para além dos burgos, das cidades de sua origem, do seu enraizamento natural:

Há um termo logicamente associado a um público urbano diverso: “cosmopolita”. De acordo com o emprego francês registrado em 1738, cosmopolita é um homem que se movimenta despreocupadamente em meio à diversidade, que está à vontade em situações sem nenhum vínculo nem paralelo com aquilo que lhe é familiar [...] Por causa dos novos hábitos de se estar em público, o cosmopolita tornou-se o homem público perfeito (Sennett, 1988, pp. 31-32).

 

Mas é cosmopolita apolítico, anti-político. Aliás, este sentido de homem cosmopolita atual, em oposição ao homem que trabalhava para construir o mundo social ou, então, anteposto ao homem político (da urbanidade, da civilidade antiga) é outro fator curioso, emblemático desta fase em que nos encontramos, entre o moderno e o pós-moderno. De certo modo, esse fluxo também expressa a incontinência entre o social e o político, entre as contradições sociais agudas (Marx) e a desejada “previsibilidade político-administrativa” (Weber).

Entretanto, há o desafio certo de reverter o processo que transformou o Outro no Mesmo, nesta mesmice atroz e que vilipendia a própria individualidade. Em meio às críticas da moda, enfim, é preciso retomar exaustivamente os clássicos e não subestimar suas categorias. Assim, ainda diríamos que o homem é o resultado de suas circunstâncias modificadas pela ação social[9]e pelo trabalho.

Afinal, o trabalho modifica o “mundo natural”, o ambiente, o entorno humano, e este movimento e/ou fluxo contínuo transforma o homem (a sua subjetividade, individualidade), e, assim, em convívio com os demais, “o homem que trabalha” passa a constituir o mundo social, como se a natureza, enfim, fosse a partir de então “o mundo natural modificado pela ação humana”. A sociedade, portanto, é moldada pelo trabalho que está na base da sua teleologia[10](um projeto que tem claras intenções) e que orienta a práxis humana (a ação humana em meio à profusão de relações sociais[11]).

Por isso, o homem é indubitavelmente um animal social, na sua gênese e formação, e ainda que seja político na verificação dos resultados seguintes. Enfim, o homem conhecerá as relações de poder — disputará o “mundo natural” em prol de sua subsistência — e isto se dará muito antes de se tornar um “animal político”, a partir da Polis grega. O mito de Prometeu (o Patrono do Trabalho) foi entendido pelos gregos como anterior ao mito da política.

O Homo sociologicus, do trabalho e da sociabilidade imposta pela sobrevivência (2,5 milhões de anos atrás[12]), foi constituído muito antes do Homo politicus (a partir da ágora grega: há não mais do que cinco mil anos[13]). Neste sentido é que nos serve a observação de que a própria política (ou o poder) antecede ou até se configura independente dos aparelhos de Estado:

As concepções “substantivas” pressupõem diferenciação institucional concreta dessas várias ordens. Quer dizer, sustenta-se, por exemplo, que a “política” só existe em sociedades que possuem formas distintas de aparelho de Estado, e assim por diante. Mas o trabalho de antropólogos demonstra de modo bastante efetivo que existem fenômenos “políticos” — relacionados com a ordenação das relações de autoridade — em todas as sociedades (Giddens, 1989, p. 27).

 

A Antropologia Política, portanto, faz uma crítica substantiva e estrutural ao classicismo, a exemplo da máxima de que a política nasceu na Grécia antiga. Mais do que nunca é preciso revalorizar a perspectiva sociológica da própria vida social — é preciso insistir na Sociologia do Mundo da Vida Social, pois é aí que estão nossas chances de revigorar toda forma de sociabilidade.

Vivemos numa verdadeira janela do tempo, presos ao presente, mas procurando olhar para o mais longínquo (ou simplesmente para-o-ali, mas indiferentes ao acolá) a partir das mudanças e das transformações de toda sorte que surgem do olho do furacão; hoje procuramos abrir esta janela do tempo para ver se, em meio à crise, conseguimos visualizar algum lampejo do presente-futuro: não apenas como telespectadores passivos das novelas do presente, mas como atores. Por isso, abrir a janela do tempo, como nosso maior desafio, no presente, ainda exigirá de nós que coloquemos a cabeça para fora, na tentativa de vermos ao menos um palmo à frente do nariz.

No entanto, haverá alguma certeza disso? De todo esse projeto de humanização (hominização) o que, de fato, ainda está em vigor? O que ainda oferece conteúdo de esperança para o futuro transformado? Desse modo, pensando em confrontar, mas sem agredir, passado e presente, cabe refletir:

  • O que trouxe racionalidade para a vida moderna, a própria “racionalidade” (institucionalização da violência e da política), o direito de regulação dos conflitos em torno da conquista e da sucessão da propriedade privada (desde o Código Civil Napoleônico)?
  • Em que sentido terá contribuído a evolução do mesmo Estado Moderno que, gradativamente, passou a reconhecer o pluralismo jurídico (dado o pluralismo social e político), despertando-se do monismo jurídico hobbesiano?
  • Esta mudança coincidiria com a transformação histórica do binômio direitos/deveres para a articulação direito/liberdades/garantias?

 
Como vimos, o individualismo jurídico é a negação do que se acreditava, por óbvio, há muitos séculos: o direito, como construção eminentemente social, foi o médium e amálgama dos mais variados interesses e demandas individuais e partidárias. O que evitou a desconstrução dos já-precários vínculos sociais – em virtude de os interesses particulares poderem converter-se em conflitos abertos – seria o médium-direito, sinalizando por meio de regras jurídicas e normas sociais os limites suportáveis frente aos interesses imediatistas. Nesta esteira, claro recurso quanto a este influxo das garantias jurídicas inclusivas, socializadoras, securitárias do bem-estar e do direito à vida, acima dos privilégios individuais, é o pluralismo jurídico que visualizamos em Haberle (2008).

 

4. Haberle: Direito e Reciprocidade Intercultural

            Como ensina Haberle (2008), é preciso ler a Constituição e o Direito como fomento cultural. Assim, pode-se ter o pluralismo como uma ideia luminar e a cultura como um conceito aberto. No caso brasileiro, teríamos de ver como se arranjaram reciprocidade e multiculturalismo na ordem jurídica ou, em outras palavras, cidadania e garantias constitucionais.

Este marco analítico constituiria um verdadeiro pluralismo constitucional: a cultura na Constituição. Também seria terreno fértil à elaboração teórica e prática do que se convencionou chamar de Estado Social na Sociedade Aberta. Este conjunto de defesas constitucionais alicerçado pela ordem da cultura ainda serviria ao combate das formas fascistas e totalitárias de Estado que se tem anunciado – como em torno do Estado Penal[14]. Portanto, Haberle intenta constituir um modelo jusfilosófico (axiológico) da cultura, notadamente nas sociedades modernas altamente racionalizadas. Evidentemente que sob um escrupuloso respeito à diversidade cultural, este culturalismo jurídico seria como um ideário a constituir uma sociedade multicultural e multiétnica.

Certamente um desafio ao Estado Social que, além das dificuldades inerentes à ordem da cultura, ainda debela-se frente ao neoliberalismo. Juridicamente, equivaleria a ter o pluralismo como pressuposto jurídico-filosófico da Democracia Constitucional – equivalente a uma dimensão intercultural e jurídica da democracia social.

Esta forma de ver o multiculturalismo – ou respeito às mais variadas intersecções culturais – empresta ao direito uma generosidade constitucional ao mesmo tempo em que busca uma articulação jusfilosófica da cultura. Haberle incorporou ao contexto jurídico a música, a literatura, a arquitetura, as artes cênicas e a pintura. Este esforço lhe valeu uma visão policrômica, multifacetada, democrática, transdisciplinar e, queria o autor, transcultural.

O constitucionalista alemão ainda tinha como meta articular uma síntese multicultural – objetivo não facilitado porque nos deparamos com uma globalização incerta e indeterminada para a maioria dos povos pobres. Haberle nos convida a uma necessária interpretação constitucional sob parâmetros sociais, económicos, jurídicos e deontológicos. Seu intento maior é converter a cidadania em um imenso fórum aberto da Constituição, onde os destinatários são seus próprios artífices.

O autor nos oferece um tripé analítico, como suporte de sua perspectiva jurídica – sempre como Multiculturalismo, Constitucionalismo Democrático e Federalismo. No entanto, é preciso firmar a convicção de que o Pluralismo Constitucional não deve ceder aos regionalismos, a fim de se constituir como real reflexo do interesse público. Esta luz conceitual procura fortalecer uma visão de duplo alcance: subjetivo individual; objetivo institucional.

Seu intento é verificar na cultura os laços próprios à legitimação constitucional, como um processo político no interior de um amplo conceito de pluralismo (como axiologia e hermenêutica). Trata-se, portanto, de um pluralismo constitucional não-dogmático. Politicamente, esta hermenêutica constitucional traz o Princípio da Dignidade Humana e é receptiva a pontos de vista angulares e até opostos ou contraditórios.

Sua perspectiva prima pela inclusão não-excludente, combatente da lógica dos meios jurídicos de exceção, em que se inclui a exclusão. A Constituição axiológica e deontológica é pluralista, opondo-se ao modelo constitucional totalitário, integrista e fundamentalista; em que não fiquem à sombra valores como: diversidade; cidadania ativa; soberania autonômica.

Desse modo, sua obra acaba por se converter num gigantesco poema-sinfônico do constitucionalismo democrático (uma “reserva teoricamente possível”). Como seguidor de K. Hesse[15], Haberle vê o vigor ou a força normativa subjacente à Constituição, como se fora sua síntese cultural. De onde também transborda o eixo de sua base conceitual: “realidade; possibilidade; necessidade”.

Há um nítido esforço por resultar em uma mescla entre cultura e direito (Justiça Constitucional), informando as formas e os limites em que atuam, realisticamente, a normatividade jurídica constitucional concernente ao Estado Social e à cidadania inclusiva – própria do Direito a ter direitos.

Acresce dizer que, na base do culturalismo jurídico, as demandas coletivas pela instituição de direitos coletivos motivaram o surgimento de processos coletivos. Entretanto, talvez, pela primeira vez na história, possamos dizer que vivemos a experiência de ter em parte do direito posto a expressão de uma realidade social e coletiva; como um sistema realmente composto por demandas, direitos, garantias e processos coletivos. Mais do que expressão da realidade social, o direito coletivo (movido pela coletivização dos conflitos) verdadeiramente pode transformar esta mesma realidade que lhe deu origem, reestruturando as vias de expressão popular e a consequente estrutura jurídica, quanto ao processo e seus procedimentos. Por fim, podemos indagar:

  1. Quais são os sujeitos coletivos do Direito?
  2. Aqui, com a vigência desta nova ótica – em que importam mais os resultados do processo para os consumidores da justiça –, as principais mudanças são afetas a algumas estruturas ou atingem o sistema do Direito como um todo?
  3. Pode-se dizer que a sociedade alcançou o status de sujeito de direitos?
  4. Quais as diferenças essenciais entre os direitos sociais tradicionais (saúde, educação) e esta geração de direitos chamada de direitos coletivos?

Para o caso brasileiro, inspirando-se no autor alemão, há muito a que se fazer a fim de visualizarmos a cultura como direito fundamental: Estado Democrático de Terceira Geração. O esforço desta análise ainda prevê uma crítica étnica e ética do Estado Social que, no Brasil, mal formado em bases jurídicas, vê-se desarticulado politicamente. Como se trata de um esforço por visualizar o que esta doutrina jurídica tem de melhor, e a ser pensada de modo ajustado à realidade brasileira, é de extrema necessidade fomentar o debate político-constitucional acerca das garantias constitucionais devidas ao/pelo Estado Democrático de Direito Social.

A cultura, a diversidade, a multiplicidade são por demais evidentes para serem ignoradas pelos juristas – pois seriam potenciais fatores de aproximação e de aporte transcultural. A Constituição Democrática deveria permitir que se tecesse uma axiologia básica do Princípio da Dignidade Humana; em que se constituísse uma reserva de valor democrático, ao invés de uma possível reserva de valor político. A limitação de recursos oficiais e tradicionais acaba por servir de restrição (uma modalidade de desculpa política) ao favorecimento/fomento da cultura.

A política segue sendo a justificativa para o não-cumprimento integral dos direitos fundamentais. Mas, é de se frisar que este tipo de alegação política – distante do controle de toda a cidadania democrática – pode aniquilar a determinação constitucional, sobretudo sem que haja consulta e convencimento popular. Sabemos, por ora, que historicamente a política sempre impediu a procedimentalização dos direitos fundamentais. Entretanto, o drama ético não demarca seu epílogo, especialmente porque vale a luta pelo Estado do Bem Estar Cultural.

Por fim, cabe dizer que Haberle (2008) não vê a dogmática como um fim em si mesmo; antes, toma-a como instrumento de análise da realidade subjacente. Se “o direito é fruto da cultura”, é preciso ter em contraste as cristalizações e as objetivações culturais como meio de desenvolvimento constitucional.     

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