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Vinício Carrilho

A Multidão e a virtù


Podemos pensar a Multidão de acordo com a análise clássica de Maquiavel? Por certo que sim. A Multidão tem virtudes, algumas virtudes são muito claras, outras bem menos, mas as tem. O que a Multidão ainda procura demonstrar ao mundo e ao homem médio brasileiro é se tem a virtù de que nos falava Maquiavel: o criador da Ciência Política. O que é a virtù?

Muito simplificadamente, virtù – como antiqua virtus – equivale à Ética Pagã (individualismo aplicado à política: quem detém o poder?). Mas, em sentido mais amplo, numa fórmula de poder, virtù = Força + Vigor + Astúcia + Estabilidade (o status do Estado). Isto Maquiavel descreveu em todos os seus escritos, de uma forma ou outra; todavia, foi no livro O Príncipe em que sistematizou sua análise científica da política.

Para Maquiavel, não importa muito o dever-ser da política, mesmo o “sonho” com a República (em Comentários à Primeira Década de Tito Lívio) é uma realidade em que se faz uso dos “fins para justificar os meios”. Esta é a grande diferença em relação à filosofia política clássica. Maquiavel criou a Ciência Política não porque usou ou deixou de usar a palavra política (como o fizera Aristóteles, no livro A Política), mas sim porque empregou os modernos métodos científicos na análise da realidade política.

O idealismo de Maquiavel “pode” ser a República (um dos maquiavelismos), mas não há puericultura, uma vez que se for preciso utilizará da mentira, da traição, do assassinato premeditado, do engodo para alcançar o primado do Bem Público. Daí a Razão de Estado (status, no latim antigo: a extrema firmeza que interessa ao príncipe da política para manter o Estado coeso). Desse modo, vemos que a Ciência Política criada por Maquiavel é absurdamente realista, promovendo um choque de realidade na especulação moralista, legalista, religiosa da política (como o fizera Santo Agostinho na análise da Prudência). Às vezes, na maioria das vezes, é preciso fazer o Mal para se obter o Bem Público.

Quanto ao Príncipe, quer queiramos ou não, quer Maquiavel tenha ou não tenha dito ou descrito claramente se e como faria uma análise concreta da “política”, o fato relevante – aliás, o único fato relevante – é que a análise que fez da política instituiu a chamada Ciência Política. Foi o primeiro a aplicar o realismo e o empirismo (bem antes de Francis Bacon) na análise da política, do poder e do Estado (status). Com Maquiavel aprendemos que o empirismo aplicado nas ciências humanas provém do esforço da cognição da história.

Comparativamente, devemos saber que os sumérios (hoje Iraque) que criaram a escrita cuneiforme, não “conheciam o conhecimento político” (epistemologia) para descrever a Polis como os gregos; contudo, foram os criadores da Cidade-Estado ou Estados soberanos, como Ur, Nipur e Lagash. Os gregos são herdeiros das instituições da Suméria e não contrário; apesar de os gregos terem criado o conceito de Polis, foram os sumérios que lhe instituíram a realidade.

 Ter iniciado a prática da política institucional confere o status de precursores aos sumérios, assim como a análise de Maquiavel sobre a política (tenha ou não usado a “palavra”) lhe atribuiu a primogenitura da Ciência Política. No fundo, análises que se prendem ao uso de certas “palavras”, que insistem em sua presença, são análises ortodoxas (bíblicas, fundamentalistas), e que pouco afetam a investigação científica relevante. Só há validade científica no emprego das “palavras” quando, por meio da etimologia, buscamos o conceito e seu alcance e não a tergiversação. Prender-se às “palavras”, como “palavrório” sem fundamento científico, é verborragia, uma retórica vazia que mascara a falsa erudição.

Será que Maquiavel tratou da virtù ou foi Petrarca? Esse tipo de conhecimento realmente é relevante? Alguém com seriedade acadêmica duvida que Maquiavel construiu as bases do realismo político com a investigação da virtù? Há pouca sabedoria na dúvida de que Maquiavel revestiu a análise da política sob a virtù. O estudante da política não deve se prender às bravatas de qualquer cientificismo. O que importa saber é que Maquiavel empregou todos os esforços possíveis a seu tempo para analisar a política em sua essência (virtù) e foi este realismo político que instituiu a Ciência Política. O resto é “filologismo”, papo-furado.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO

Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ

Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais

Doutor pela Universidade de São Paulo

 

 

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