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Vinício Carrilho

A imagem do humanismo


Este não é um turista em praias do Nordeste brasileiro. É um assassino em um presídio de segurança mínima, na Noruega, em processo irreversível de ressocialização.

A imagem do humanismo - Gente de Opinião
 

Se uma imagem vale mais do que mil palavras, o que você achou desta, do preso tomando banho de sol e se sentindo gente?

Quem apostou sua pobre vida construindo modelos funcionalistas, apostando em retóricas de lógica vazia, negando-se a ver a força moral que há na reorganização social, que um dia acreditou que a “socialização primária” não permite o crescimento e a ressocialização, que tal um choque de realidade? Se você precisa de algo mais, veja uma breve descrição da foto:

“À disposição dos 120 moradores da ilha norueguesa de Bastoy, há quadra de tênis, campo de futebol, saunas, câmara de bronzeamento artificial, sala de cinema, estúdio musical e uma biblioteca. Os quartos são mobiliados e equipados com TV a cabo. O trabalho na fazenda, na colheita, na lavanderia, na balsa ou na pesca rende cerca de 57 coroas norueguesas (ou 20 reais) por dia para cada um. Ao contrário do que se imagina, no presídio com a menor taxa de reincidência da Europa não há celas, armas, cassetetes ou câmeras de monitoramento; apenas uma regra: nada de álcool, drogas e violência. Os ex-assassinos, ex-ladrões e ex-traficantes trabalham, estudam, se divertem, se exercitam e tomam sol. Aqui, o prefixo “ex” não é por mera generosidade, e sim pela baixíssima taxa de reincidência criminal. Apenas 16% dos que cumpriram pena em Bastoy voltam ao crime; no Brasil, o índice supera os 70%. O êxito do “corretivo” aplicado na ilha já faz com que a Noruega pense em expandir o modelo, iniciativa que causa arrepios nos penalistas mais rígidos e revanchistas. “Bastoy faz exatamente o oposto dos presídios convencionais, onde os presos são trancafiados sem qualquer tipo de responsabilidade pessoal, alimentados e tratados como animais”, diz o diretor da prisão. Ao contrário dos modelos mais rígidos, o sistema penal norueguês não prevê nem pena de morte nem prisão perpétua, e o tempo máximo que um cidadão pode passar na cadeia é de 21 anos (no Brasil, são 30). Assim, a sociedade norueguesa é obrigada a se conformar com o fato de que a maioria dos prisioneiros, por mais hediondos que tenham sido seus crimes, vai ser libertada mais dia, menos dia”[1].

Se no Brasil as prisões são masmorras que apenas pervertem ainda mais as pessoas, no mundo civilizado o preso é uma pessoa que se quer de volta ao convívio. Cada vez que vejo reportagens como esta, mais me certifico de uma obviedade: os presos são desgraçados no Brasil, tratados no pau de arara, porque com o povo não é diferente. O preso da Noruega tem esse tratamento humanitário porque seu povo conhece os direitos humanos. O preso é um ser humano, na Noruega, porque o contribuinte que paga os impostos que garantem o sistema prisional cinco estrelas é, obviamente, um cidadão de primeiro mundo. Nenhum contribuinte reclama dos impostos pagos, sejam eles convertidos aos presídios de luxo, sejam aplicados na manutenção das escolas e do sistema público de saúde. O cidadão não reclama dos impostos, dos “privilégios” dados aos presos, porque são os mesmos meios empregados na satisfação da vida comum das pessoas. O cidadão aplaude o humanismo aplicado no sistema prisional porque, no seu dia a dia, o humanismo não é uma lição escolar (ou melhor, não é “só”), mas sim uma realidade concreta. O que há de diferente entre nós e eles, entre outras coisas importantes, é a educação recebida. Como somos mal educados, sem conteúdo, sem respeito, atribuímos nossos males aos outros: um dia são os presos, os culpados, no dia seguinte são os políticos. Nunca nos resta uma mínima parcela de responsabilidade. O corrupto é sempre o outro, nunca é aquele que tenta ludibriar o sistema para acertar sua vida. Lá, no mundo civilizado, a criança sabe desde o berço que sem educação não vai a lugar algum. Na Terra do Nunca, em que a miscigenação parece ter gerado apenas tropeços na cultura, o melhor é cada um cuidar de si – até porque o Estado está contra todos. Lá, os representantes têm, obrigatoriamente, ensino superior; a maioria com alta especialização. Aqui, temos a capacidade de eleger dirigentes que se vangloriam de nunca ter ido à escola. Como você acha que esse cidadão, um analfabeto funcional, vai gerir os recursos destinados à educação? Quem você acha que são os próximos clientes do sistema prisional? Você realmente acredita que prendendo crianças, nós teremos força moral para construir um país decente de se viver? Você acha mesmo que com tolices e simplismos desse tipo, nós teremos um lugar para chamar de país? Que cultura enfadonha é esta que transforma tolices e bravatas, o óbvio ululante, a burrice solene, em grandes lições de conhecimento jurídico? Ver esse tipo de debate público sem o mínimo critério de inteligência, repetido por um monte de gente sem-noção, inclusive nas faculdades de direito, com certeza, me dá muita vergonha de ser brasileiro. Vendo a reportagem, algum especialista imbecil ainda vai dizer que isso não se aplica ao Brasil. É claro, o que se aplica ao Brasil é a inteligência que nos trouxe a esse estado horrível e quase-irreversível de violência e caos social. O que os gênios que nos governaram por séculos nos trouxeram foi um “estado de natureza” que não se corrige com o direito e muito menos com a mentira.

A conclusão, nós já sabemos, mas não custa repetir: Nós afrouxamos a moral e endurecemos as penas. Na Noruega, “afrouxando as algemas, eles conseguiram alcançar a menor taxa de reincidência criminal do mundo”.

Meu pai sempre me dizia que o Brasil tem muitas lições a oferecer ao mundo, mas o que é mesmo que nós temos de melhor? Meu pai era um crédulo, otimista, entusiasta com seu país, até mesmo quando foi fichado pelo DOPS. Confesso que tentei seguir seus passos, mas me perdi em algum lugar da realidade brasileira.


Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO

Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ

Pós-Doutor pela UNESP/SP

Doutor pela Universidade de São Paulo

 



(1) http://revistasamuel.uol.com.br/conteudo/view/20331/Conheca_a_prisao_clube_que_esta_mexendo_com_o_sistema_penal_europeu.shtml

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