Quinta-feira, 16 de outubro de 2025 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Sandra Castiel

O CAMINHO DE VOLTA


A proximidade do inverno da vida levou-me a refletir sobre uma curiosidade: por que, à medida que envelhecemos, as lembranças remotas tornam-se cada vez mais nítidas em nossa mente? Quanto mais velhos, mais nos reportamos ao passado longínquo, à mocidade e à infância; passamos a lembrar tudo com detalhes: nossos pais ainda jovens, a infância junto a nossos irmãos, a fisionomia de avós, avôs e tias, as brincadeiras com os primos, as casas onde vivíamos, a vizinhança, a rotina de nossa vida então, a escola, os colegas de turma, as professoras que tivemos, eventuais apuros esolares, as broncas etc.

Muitas dessas lembranças nos enchem de alegria; outras, nem tanto, mas isto pouco importa, pois o aspecto mais interessante nisso tudo é que nelas nos encontramos; só a partir dessas lembranças nos damos conta, enfim, de que trazemos conosco um sentimento novo e dorido: o sentimento de que nos perdemos de nós mesmos em algum momento da longa estrada; no espelho, o rosto castigado que contemplamos em nada lembra nosso próprio rosto, aquele com o qual nos reconhecíamos; este que nos contempla agora se parece com os rostos de nossos pais na velhice. E isto é algo que, se nos enche de ternura, também de certa forma incomoda, pois envelhecemos e não nos demos conta, tão ocupados estávamos cuidando da vida e tentando assegurar futuro melhor para os filhos.

Tenho a sensação de que, intimamente, cada ser humano, quando jovem, pensa que vai envelhecer e permanecer com a mesma cara, porque acredita que é especial; e isto é bom, mas não é assim que ocorre.  

Algumas pessoas conseguem retardar um pouquinho o processo implacável do envelhecimento, mas só um pouquinho, porque o chamado da natureza é muito, muito forte, e esse chamado impõe ao nosso corpo sua realidade etária, não tem jeito.

Tudo isso me leva a pensar que seguimos a vida partindo de um ponto inicial e, na velhice, voltamos inevitavelmente a ele, daí as lembranças remotas impondo-se sobre as lembranças recentes. Por mais que nos distanciemos do ponto de partida, acabamos sempre voltando a ele, pois é ali que fica o cerne de nossa identidade, de quem realmente somos. Nesse processo, há uma espécie de tentativa de resgate de nossos primórdios, uma espécie de criançamento de nossa alma. Esse sentimento levou o poeta Manoel de Barros a afirmar que não caminhamos para o fim; caminhamos, sim, para as origens.

O interessante nisso tudo é que todos, absolutamente todos, se vivermos até a velhice, fatalmente empreenderemos esse caminho de volta; um caminho, aliás, agradável de ser percorrido, pois nele vive a criança que fomos algum dia. 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoQuinta-feira, 16 de outubro de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Paixão Literária

Paixão Literária

Na juventude, tive uma paixão devastadora por um escritor bastante conhecido no universo das letras. Jamais havia sentido pelos namoradinhos da époc

CONTINHOS MARGINAIS IV - BABA DE MOÇA

CONTINHOS MARGINAIS IV - BABA DE MOÇA

Ele a conhecia de vista. Moravam no mesmo bairro, passavam pelos mesmos lugares, todas as manhãs. Ela há muito estava de olho nele: alto, olhos clar

Literatura: escritores e estilos

Literatura: escritores e estilos

I    “Espero que não a tenha perturbado, madame. A senhora não estava dormindo, estava? Mas acabei de dar o chá para minha patroa, e sobrou uma xíca

Continhos marginais II - O terremoto e as flores

Continhos marginais II - O terremoto e as flores

Empresária e rica, sua casa era uma alegria só: vivia entre filhos jovens, entre amigos e amores (estes, um de cada vez, enquanto durasse a paixão).

Gente de Opinião Quinta-feira, 16 de outubro de 2025 | Porto Velho (RO)