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Paulo Saldanha

SEU PATRÃO E SEUS ENCANTOS


O “seu Patrão”, e o “Seus Encantos” eu não conheci, mas diversas pessoas da cidade insistem que eu deles deva falar. É certo que não me farei de rogado, pois o que desses personagens eu recolhi “me valeu por demais”!

         Aprendi, por exemplo, que o “seu Patrão” era moreno, baixo e teria a profissão de carregador, atuando ora no porto oficial, ora na estação ferroviária, ora nos limites da Empresa de Navegação do Guaporé, locais de saudosa memória. Seu mercado de trabalho tinha o foco nos comerciantes e seringalistas.

         Meu pai registrou que “ele morava bem próximo do local onde a antiga empresa aérea Cruzeiro do Sul implantara os mastros das suas antenas, terreno em que tinha pequena plantação”.

         Pesquisei, falei com o Salomão Badra, com Dona Mafalda Ewerton Flores e ambos deram-me testemunhos coincidentes sobre esse personagem folclórico, que mexia com o civismo do Município, nos seus tempos de cidade menina, sentimento que continuou na cidade mocinha, mas que, na vida adulta perdeu o contato com o “seu Patrão”, porque o “seu Patrão”, transferiu o seu status, antes dos anos 50, quando mudou para a morada do Senhor, Pai e Criador.

Sua configuração física tomou outra forma, virou energia, transmudou-se em espírito de luz, posto que, apesar da pouca cultura, mantinha os seus valores cívicos bem elevados, o mesmo civismo que se corporifica através do cumprimento dos deveres como cidadão, combinados com a plena consciência dos seus direitos.

         Esse “seu Patrão”, apesar das dificuldades para se comunicar, em face da ausência de maiores conhecimentos, ensinava a todos que o civismo é prática imprescindível para a valorização do brasileiro enquanto cidadão. E nas ocasiões festivas retirava o seu fraque completo, que jazia durante meses dependurado numa escápula da parede da sua casa, vestia sua melhor camisa, colocava uma gravata borboleta de cor vermelha, calçava as já puídas luvas brancas e as botas desgastadas, mas bem lustradas, punha na cabeça a cartola e desfilava principalmente na parada do Sete de Setembro, após o que se dirigia para a frente do palanque e discursava saudando a data e as autoridades ali presentes, ainda que tripudiasse das frases, agredindo as flexões verbais e produzindo erros gramaticais que nem distraiam a atenção do público que o aplaudia.

         Mas, nenhuma grosseria era proferida! E só encerrava o discurso quando as palmas e os “Muito bem” eram exaltados por alguém que se antecipava para o palavrório não ultrapassar os 5 minutos. Do contrário, ele se transformaria no maior exemplo para os discursos do Bolivariano Hugo Chaves e do Cubano Fidel Castro.

         Aquele homem, que parecia ter um parafuso a menos, ensinava muito mais: celebrar as datas importantes era exercer a sua cidadania, era demonstrar o seu júbilo por estar vivo homenageando a pátria que lhe serviu de berço. Aquela virtude se complementava na dimensão que encerra a palavra civismo, que, no caso dele, resplandecia fulgurante, de forma exemplar.

         Mas também corri atrás do personagem conhecido como “Seus Encantos”. Homem alegre, que se realizava fazendo o bem. Lecionava para alunos em dificuldade. Falava em público de forma competente, até porque tinha cultura geral. Atuou, inclusive, como Juiz de Paz, fazendo casamentos civis.

         Seu rosto oval, moreno claro, cabeça com farta cabeleira, era alto e magro e andava como se fosse um nobre. Um homem elegante e alma superior, que não passaria de forma incógnita em qualquer ambiente.

         “Seus Encantos” era um homem virtuoso, parecia ter sido o modelo descrito por Aristóteles quando procurou no ser humano a perfeição que enxergaria ao decifrá-lo:“Uma pessoa virtuosa é a que possui a coragem (não a covardia, não a audácia), a competência (a eficiência), a qualidade mental (a razão) e a nobreza moral (a ética)”.

         Naquelas pessoas a quem entrevistei ficou translúcida a ideia de que “Seus Encantos” era, de fato, um ser superior, pois procurava ser justo, ponderado, generoso e piedoso. Na visão católica poderia ser um santo... Atributos para essa elevação ele tinha.

         “Seus Encantos” seria a personificação da ética e da competência, da elegância e da isenção no julgamento. Aliás, até pecava nesse particular, por excesso, pois sempre procurava encontrar as virtudes que algum pretenso adversário desejava negar em cima do conceito sobre a parte contrária. Tinha a coragem de interceder em favor daquele, eventualmente, atingido por um julgamento precipitado.

         Muito solícito, jamais criticava uma pessoa, ainda que estivesse sendo castigada por um testemunho pesado, aniquilador.

                   –Mas, não fale assim do nobre amigo, ele tem os seus encantos...

         Vai daí que o apelido pegou e ficou: “Seus Encantos”.

         Um dia, “Seus Encantos” cansou-se de Guajará-Mirim e transferiu a sua moradia para o Planalto Central e foi visto lutando em Brasília por sua justa e merecida aposentadoria, lugar onde deve ter ensinado a prática do bem, nos moldes da sua íntegra personalidade, deixando uma cidade saudosa, que se esqueceu de saber o seu nome verdadeiro.

         Passou pela vida de maneira soberana e íntegra, apenas conhecido como um Homem chamado virtude...

“Seus Encantos”, o homem piedoso!

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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