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Gente de Opinião

Paulo Saldanha

Os dois catalinas: um da FAB, o outro, do Capitão Muniz


        Eu me lembro, ah! se lembro da queda do Catalina da FAB ali nas cercanias do Lago Deolinda... Mas desse desastre nem preciso falar, posto que o meu confrade Matias Mendes dele tratou, com a maestria de sempre, com o título ACIDENTE DO CATALINA: L’Histoire d’un Héros Oublié, enaltecendo a figura do soldado Martins, o nosso Martinzão, que, ainda nos seus 19 anos, se transformou em herói, salvando vidas e minorando sofrimentos entre os passageiros.

         Valerá sempre reler o texto do ilustre acadêmico tratando dessa parcial tragédia. Apenas 4 mortes, entre os 38 passageiros e os 5 da comitiva.

         Mas me fixarei no grande susto que a cidade guajaramirense passou, quando possivelmente em 1963, 1964 ou 1965 (o ano se perdeu nas asas da memória) um barulho inusitado para um cenário noturno foi recolhido do céu perolense, entre as 19 horas e 20 horas, enquanto parte da cidade se dirigia para o Cine Guarany  ou Cine Melhem desejando preencher o tempo assistindo o Dólar Furado ou Pecus (My name is Pecus).

         Bem, mas voltemos a zoada (diria meu pai) infernal que assustou meninos, mulheres e homens aqui do pedaço. Umas luzes vermelhas cintilavam, porém num céu sem lua, apenas um vulto relativamente grande se movia no espaço.

         A Igrejinha já acendera suas lâmpadas e a novena começara no horário, mas a sinalização das luzes das torres da catedral não foi ligada. E aquele volume no céu se movimentava, acelerando os motores, desejando chamar a atenção.

         Um pânico atingiu parte da população! Avós apanhavam seus netos, mães procuravam trazer para o seu aconchego os bebês que estavam no berço ou na rede. Choro, sem ranger de dentes era ouvido, como se, em côro, os habitantes repetissem a cena de um ensaio, que, logicamente, nem houve...

         Não me lembro o nome (seria Luciano?) do telegrafista da Cruzeiro do Sul, empresa aérea que servia as pistas rondonienses de então, que correu para a pista, acionou o motor de luz, ingressou no seu cubículo e ligou a sua parafernália e pôs-se em contato com o “monstrenguinho” que, no alto, se locomovia sobre os nossos telhados.

         Sempre alerta, a Rádio da Aeronáutica procurou a Voz da Cidade e pediu que divulgasse a necessidade de quem tivesse um automóvel, uma rural willys, um jeep ou caminhão, o que tivesse, enfim, fosse para a pista e se posicionasse nas laterais com a luz baixa acesa, visando auxiliar um pouso de emergência. Orientou que alguns veículos ficassem nas cabeceiras com a luz baixa, para dar segurança ao piloto que, em cima, fazia as evoluções.

         Solidariedade que não faltou. Até houve sobra de carros, cujos proprietários desejavam apenas auxiliar.

         E o Capitão Muniz, ia até a Bolívia e “embiocava” o nariz do avião no rumo, na direção da pista de pouso, cabeceira Oeste, nas confluências do Posto Nogueira e vinha, vinha, quase pousava e arremetia. Via-se que estava inseguro, mas o combustível não daria para muito tempo. Duas, três, quatro tentativas e nada! O Pássaro de aço não encontrava coragem para por seus pneus na pista de terra, ali tão às suas mãos, digo, à disposição de suas rodas.

         Aqui convém falar quem era o capitão Muniz: ele, idealista, oficial da Força Aérea Brasileira, já aposentado, fundou aSAVA, com sede em Belém, no ano de 1951. SAVA, a sigla do pomposo nome Serviços Aéreos do Vale Amazônico, possuía uma fatia do mercado aeroviário como regional que era, principalmente no ramo de transporte de carga, notadamente carne bovina. Mas acabou sendo um elo de integração nesta Amazônia de Deus, ligando o Pará, ao Amazonas, Acre e Rondônia, inclusive Guajará-Mirim.

Ocorreu que, nesse quase fim do dia, decolando de Rio Branco, Acre com destino a Porto Velho, foi desviar de umas nuvens escuras que escondiam um temporal tenebroso, perdeu a rota e teve que alternar no endereço de Guajará-Mirim, mas, como o desvio acabou muito longo, sem poder chegar à capital do Território, socorreu-se da pista local.

 E foi aquele Deus nos acuda!

         Muitas mulheres intuíam que o final dos tempos havia chegado... Os terços foram lembrados e rezados com contrita devoção, rogando pela salvação das almas. Muito choro! Muitas velas acesas!

         A quarta arremetida do monstro de aço sinalizou na cabine um pequeno alvoroço e o pouso não poderia mais tardar. E mais uma invasão ao país irmão foi determinante para a tomada da pista nacional e o manche foi mais uma vez utilizado, junto com os pedais e a manete para colocar aquele bicho no chão.

         Entrementes, na cidade boliviana de Guayaramerin o pânico também gerou histeria, muito medo e confusão. Afinal, nenhuma ave prateada voava de noite.

         E o Catalina veio, veio e, de mansinho, tocou o chão e foi deslizando, deslizando com velocidade ainda alta. Ocorre, que um dos donos de um dos caminhões colocados na cabeceira contrária (onde hoje é a rodoviária) foi enxergando aquela coisa com suas luzes se aproximando, aproximando, não contou até dez e ligou o farol alto na cara do comandante Muniz, que nem perto estava, mas que intuiu que estava prestes a se chocar com aquela luz tão forte a sua frente e freou com força total. Resultado, os dois pneus estouraram com um estrondo digno de registro nos anais de “O Imparcial”. Salvou-se o pneu da bequilha.

         Alguém gritou: pronto a bomba foi detonada e explodiu!

         Nos lares, suco de maracujá e o xarope maracujina foram receitados em profusão...

         O certo é que o Capitão Muniz e staff foram salvos, mas tiveram que aguardar a chegada de outros pneus, dois dias depois, para substituir aqueles que foram dilacerados em função da freada violenta que deu na sua máquina de estimação: um já velho e quase vencido Catalina.

        

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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