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Gente de Opinião

Paulo Saldanha

Joana Homem, a Madrinha


“De repente, não mais que de repente” (Vinicius de Morais, me perdoe pela invasão!) eis que fui remetido à lembrança da mulher Joana (desconheço o sobrenome), minha Madrinha espiritual, a parteira que me recolheu e ninou no exato instante em que minha Mãe me entregou ao mundo.

Seguindo uma crendice do passado, ela mandou enterrar o meu umbigo ao lado de uma das lojas mais prósperas de Guajará-Mirim, na época, correspondente do Banco do Brasil, dizendo:

–Esse menino vai pegar em muito dinheiro!

Acabei sendo Caixa de outro Banco Federal no inicio de minha carreira...

Meus pais a veneravam e eu, então... quase lhe prestava a genuflexão, quando de suas descidas, através dos rios, desde o seringal Ouro Fino, de onde extraia a sua subsistência e ampliava as rendas com a castanha, poaia e peles silvestres.

Por sua determinação, atuação e exemplo para vencer as dificuldades todos a conheciam como Joana Homem, embora fosse uma doce e respeitável mulher, afetuosa, carinhosa e delicada, ao mesmo tempo. Perspicaz, intrépida, voluntariosa, cortava lenha com machado, roçava, plantava, carregava paneiros com castanha e cortava as seringueiras, trazendo no meio da tarde o leite destinado ao preparo das pélas de borracha.

Atirava muito bem! Ia à caça e pescava sozinha numa canoa pequena ou num dos barrancos da vida.

Teve poucos companheiros, que lhe adoçavam a vida, mas que eram afastados se fossem incapacitados para enfrentar uma relação que valorizasse o trabalho e a iniciativa, com o mesmo ardor com que deveria satisfazer suas exigências carnais.

Mulher negra, alta até para a época em que viveu, dentes perfeitos, mãos calejadas; eu a achava bonita e presumo que, na juventude, tenha tido um corpo escultural. Alguém, hoje velinho, que não deseja aparecer, me confidenciou: “mais moço que ela, arriava os quatros pneus, em face da grande queda pela Joana Homem”, escondendo de mim o fato de que tenha ou não chegado “às vias de fato” com aquele mulherão.

O certo é que a Madrinha (assim eu a tratava) era uma mulher bem resolvida, bastante querida por todos que a conheciam. Era Parteira das ótimas, seringalista vencedora, castanheira ativa...

E vidente das melhores, cuja capacidade mediúnica a destacava como pessoa altamente espiritualizada, pois também era sensitiva.

Quando chegava do seringal, hospedava-se, via de regra, em nossa casa e eu a recebia liturgicamente, consoante já falei, de uma forma respeitosa, osculando-lhe as mãos e recolhendo os seus beijos e os seus abraços mais ternos.

Minha Avó, Bernarda, por mim também muito amada, disfarçava o ciúme que sentia a partir da minha devoção àquela Madrinha, tão bonita quanto querida.

Para mim ficou o registro na memória de que jamais ela iniciava uma refeição sem benzer-se e sem agradecer pelo alimento ali disponível, assim como, o fato de já na sua chegada, passar as suas mãos sobre a minha cabeça e fazer uma prece (ou seria uma bênção muito forte?), como se desejasse afastar os maus fluidos e desejando que a paz, a ventura, a harmonia e a prosperidade me envolvessem.

As suas produções de borracha, dependendo das épocas, castanha e poaia eram negociadas na cidade, ora com o Vassilakis, Suriadakis ou algum outro que lhe pagasse o melhor preço. Depois ia às compras.

Muito nítida ficou nas minhas lembranças uma tragédia aérea (doída recordação), quando, em 1962, no dia 14 de dezembro, um avião Constellation caiu, pegando fogo, a cerca de 50 Km da cidade de Manaus. Era da Panair do Brasil. Entre os mortos a nossa amiguinha da Juventude Estudantil Católica-JEC, Ana Benita Perez Pontes, irmã do atual Deputado Federal por São Paulo, o guajaramirense José Aníbal. Porém, não recebíamos informações do desastre.

E, aproveitando-me da ligação com a minha Madrinha, bastante emocionado, ainda sem noticias de que teria ou não havido sobreviventes (naquele tempo era difícil a atuação da aeronáutica na procura de aeronaves desaparecidas) a ela perguntei se poderia agir, valendo-se dos seus poderes, para procurar tranqüilizar-me.

Ela, a minha Madrinha, recolheu-se ao quarto, levando umas velas. Algum tempo depois, retorna para a sala, bastante trêmula, e, abraçando-me, disse-me: “meu filho você e os pais da moça precisam ser fortes! Vi uma escuridão total. Ninguém se salvou”...

Assim como os demais amiguinhos dela, eu fiquei bastante abalado com o precoce falecimento da Ana Benita, levada para o andar de cima de forma trágica.

Dois dias depois, as rádios manauaras –possivelmente a Difusora do Amazonas, Rio-Mar ou Baré– confirmavam a infausta noticia que a minha Madrinha Joana Homem me adiantara: ninguém sobreviveu.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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