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Gente de Opinião

Paulo Saldanha

Deus não necessita dos homens


Há livros que a gente lê ou filmes a que assistimos que ficam marcados indelevelmente no nosso cérebro.

Nessa direção guardo no recôndito da minha lembrança os livros Robinson Crusoé, Gulliver, Um ianque na Corte do Rei Artur, lidos ainda na segunda infância; mais tarde fui presenteado com O Egípcio, O Renegado e o Aventureiro, do Mika Waltari que tanto me seduziram.

Nessa linha, os filmes Entre o amor e a espada, Sissy, Sissy e a Imperatriz, Sissy e seu Destino, estrelado por minha “primeira namorada” a Romy Schneider, até hoje me falam tão alto.

Todavia, jamais esqueci o enredo do filme “Deus não necessita dos homens”, uma história católica em que um homem, ante a ausência do Sacerdote, teve que assumir algumas funções do pároco, que abandonara a paróquia, para viver uma nova história.

 Como a arte imita a vida (ou será o contrário) eu soube que nos anos 20, num lugar fronteiriço, chamado Vila Bela, eis que o pequeno núcleo despojado do seu Cura, também colocou no lugar daquele o cidadão que zelava pela pequena igreja, nivelando-o ao grau de novo mensageiro do Cristo, com direito a ouvir confissões, celebrar missas, distribuir os sacramentos e, inclusive, aconselhar os seus pseudo fiéis.

Embora relutasse, em nome da decência e dos seus frágeis escrúpulos, eis que movido por estranha força, o Policarpo, que jamais foi o nacionalista Quaresma, personagem de Lima Barreto, decidiu assumir a indumentária psicológica de forte representante da Santa Sé naquele ermo pedaço de chão.

Ocorre, que jamais conheceu o Latim, nada conhecia de Teologia e mal e porcamente falava castelhano. Mas o seu portunhol era sofrível.

Para enganar os fiéis apenas balbuciava alguns termos, mexendo com os lábios, mas tornando a voz elevada quando o termo era Pater Noster, Benedictus est, dominus vosbiscum, culminando teatralmente com a bênção sinalizando o sinal da cruz.

Todavia, o capiroto foi ensaiando uma gozação, com ânimo de divertir-se com a fraqueza humana e decidiu baixar um espírito no padre de araque que foi ficando audacioso, temerário, acintoso e nada humilde.

As parcas arrecadações financeiras iam sendo destinadas para as compras da residência do Policarpo.

As confissões ouvidas, principalmente das mulheres, despertaram-lhe o ânimo da sedução e passou a se insinuar ali dentro ainda do confessionário, porque se excitava com as confidências que ouvia, quando assediava as senhoras e moças, provocando-as com convites além de audaciosos para um cura, ainda que  “adhocquiniamente” nomeado pela população carente de espiritualidade.

Na verdade, o novo Don Juan ia descuidando-se da própria esposa, a doce Manoelita, empolgado com o conceito de conquistador que ia experimentando.

Das confissões para a execução das cantadas que passou a exercitar foi um pulo. E tudo ia bem, até que pelas tantas, sua Comadre Antonina Alvarado Cortez, despejou-lhe, ali no confessionário, em voz baixa, os seus momentos de desencanto com o marido Crizanto Cortez, um montão de decepções e frustrações existenciais, pois o “sacrossanto” esposo ficava-lhe devendo na hora, excelsa hora, do amor a dois, que, no caso, seria um momento a um.

Sugestões e sugestões para acalmar aquela fúria toda, o nosso Policarpo foi transferindo para a chorosa esposa, todas passando pelo ensandecido desejo de posse que Poli ia acalentando, ali dentro do confessionário, cujo desequilíbrio se se levantasse seria visível pelos demais fieis, ali ao lado.

Palavras da perdição!...

Só que Antonina, embora frustrada, era apaixonada por Crizanto e não aceitou a corte, e, dizendo-se ultrajada pelas cantadas recolhidas, saiu bufando do confessionário, desconjurando o padreco forçadamente imposto como homem de Deus, em má hora maquiavelicamente colocado na pauta e na agenda daquela pequena igreja, só porque atuava como amador sacristão.

Antonina abriu o bico, deitou falação e os homens, incrédulos e revoltados, partiram para cima do ídolo de barro, destruíram o confessionário, pisotearam o falso padre, arrebentando-o todo.

Até hoje, o que nunca foi, sem jamais ter sido, fugiu da cidade, deixando a mulher nos braços de Pepe Rodriguez, um dos criadores do Cura deformado, um monstrenguinho como homem e como padre falso.

Na realidade, Pepe, desde há muito, de olho no furacão que representava Manoelita, a pudica esposa de Policarpo, o sacristão, tornou-se substituto na vida da mulher, em cujos braços,  Pepito, passou a deliciar-se, ele, um quase respeitável seringalista, quase chefe de uma das mais antigas famílias daquele pedaço do oriente boliviano.

Deus não precisa dos homens, mas nós humanos é que necessitamos dÊle, por sua essência e por tudo o quanto representa como esperança. Criar falsos pastores, na vã expectativa de ficar próximo da força divina, pode ser um tiro no próprio pé. Será sempre mais edificante falar diretamente e só com o Ser Supremo do que através de impostores.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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