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Gente de Opinião

Paulo Saldanha

Caixeiros viajantes e o regatão


Nos anos 20, 30, 40, 50 e 60, era comum nesta geografia amazônica a presença dos famosos caixeiros viajantes que, ao lado dos regatões, tinham a importância dos poderosos, pois traziam as notícias e as informações mais recentes (dentro do possível), acontecimentos dos quais tomavam conhecimento justamente por serem transmitidos – esses informes – a partir do berço das terras de onde vinham.

Sabe-se que o caixeiro viajante é encargo antigo, pois estes se movimentavam através da venda de mercadorias e produtos fabricados alhures, em centros adiantados, e os faziam chegar aos mais longínquos ermos do poente brasileiro. Na época – anos 20 e 30 – utilizavam os grandes barcos, as gaiolas e o trem; depois, já nos anos 40, valiam-se do Catalina, do DC-3 e até da ferrovia EFMM para chegar neste extremo oeste nacional.

Homens que supriam as curiosidades do povo dos lugarejos, alentando a vida dos homens e mulheres que vegetavam nos confins de uma terra dadivosa, mas abandonada; geografia física e humana que se movia no modorrento compasso de quem tinha como aspiração jamais perder a esperança, fincada na fé.

O caixeiro viajante foi retumbantemente retratado pela TV Globo, através do talento do ator Ney Latorraca na pele do mulherengo “seu Quequé”, na mini-série Rabo de Saia.

Por seu turno, o regatão fazia a mesma coisa, permitindo-lhe idêntico conceito, ou seja, “estar sempre com a bala na agulha”, movimentando em barco próprio ou fretado, vendendo um elenco de artigos ou trocando-os por borracha, castanha, ipecacuanha ou peles de animais. O escambo fazia parte de um cardápio econômico-financeiro... Negociavam com tecidos, bijuterias, miudezas, remédios e mercadorias em geral, jamais faltando o querosene em lata, perfumes tipo “Flor de Mutamba” (com o qual presenteava as prendas de ocasião), pó de arroz, pasta dental, etc. etc.

No centro-oeste essa figura tinha o nome de mascate, mercadores que vendiam bens, muitas vezes movendo-se através de muares, cavalos, carros de bois, fubicas ou jabiracas (carros primitivos da marca Ford, por exemplo). Grandes fortunas nasceram dessa atividade, notadamente através de libaneses que chegaram ao Brasil por conta da crise decorrente da primeira guerra mundial, alguns dos quais foram inicialmente para os EUA, passaram pela Argentina e arriaram sonhos e suas esperanças cá neste pedaço de chão.

Muitos desses deixaram noivas e mulheres no Oriente e aqui constituíram sua base familiar, casando-se com filhas de nordestinos e mulheres bolivianas.

Alguns desses caixeiros viajantes chegavam com ares de conquistadores e jogavam seus charmes em cima das meninas casadouras do pedaço e, com aquela lábia, conquistavam igual aos botos da lenda a ingenuidade de algumas dessas menos avisadas, que depois davam à luz a um lindo bebê cujo pai já desfilava noutras plagas, certamente engravidando as incautas de alhures.
Muitos deles se enturmavam de tal modo que as festas nos clubes da cidade lhes eram franqueadas, enquanto se esbaldavam nas danças e contradanças, rostos colados num grude tal que era bem maior daqueles que a noiva ou a mulher da cidade de origem do caixeiro viajante se permitiam, posto que intuíam que seus companheiros estariam, sem dúvida, divertindo-se por aqui. Chumbo trocado não dói...

Fora as ratadas que alguns deles iam provocando, sinalizando o atrevimento e a soberba que uns e outros ostentavam. Como este caso:

–Fulano, eu sei que você é um pé de valsa. Por que não está dançando?
–Ah! Meu amigo, a única mulher que eu dançaria não só nesta noite, mas para toda a vida, é aquela ali, bem feita de corpo e pernas bem torneadas...
–Qual?
–Aquela ali, vestido vermelho...
–Bem, aquela mulher ali é casada e é a minha mulher.
–Desculpe-me, companheiro! Nenhuma intenção de lhe agredir...

E o caixeiro viajante colocou o rabo entre as pernas, pisando leve e falando fino, partindo no rumo do Hotel Comercial do Quintino de Oliveira, onde estava hospedado, ali quase no fim da Avenida Costa Marques...

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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