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Paulo Saldanha

A COBRA GRANDE DE CONCEIÇÃO


Pedro se casou com Anita no dia 30 de dezembro de 1944. Como apreciava a vida campestre e trabalhasse numa grande empresa regional, resolveu passar a sua lua de mel no médio rio Guaporé.

Conversando com a noiva acertaram que, após a cerimônia do casamento, aproveitariam o avião da Cruzeiro do Sul e embarcariam rumo a pista localizada em Conceição e, de lá, tomariam o barco da empresa de navegação até a fazenda que os receberia tão apaixonados.

Sabiam que a composição fluvial já deixara o porto de Guajará em 28 de dezembro e, certamente, no dia primeiro de janeiro de 1945, o mais tardar, a embarcação os recolheria, abaixo do Forte Príncipe da Beira, ali no barranco guaporense de Conceição, sob o comando do líder Anacleto Lisboa.

Hospedados com as honras de estilo no casarão do Mestre Anacleto, Pedro e Anita divertiam-se andando de bicicleta pela pista de pouso, de terra, fazendo juras de eterno amor, como é comum enquanto o dia-a-dia de um casamento não passa a atormentar os casais que se formam. Era felicidade só!

Uma inquietação, porém, passou a entediá-los, pois a tal composição fluvial que os levaria, no dia 02 de janeiro não vinha. Estava atrasadíssima! E desejavam chegar logo ao lugar escolhido.

Já no dia 03 de janeiro, à noite, bem depois do jantar, após um delicioso papo mantido com o anfitrião, Pedro passou a ler um livro sob a luz de um candeeiro. Como o sono não chegava, resolveu sair e bem distante viu, vindo como lá do estirão, bem longe no rio, um brilho forte que lembrava a luz do motor em movimento.

Instada pelo marido, Anita passou a arrumar as malas e Pedro, tendo ao lado o Mestre Anacleto, caminhou em direção ao barranco. Lá longe dois focos de luz cintilavam, parecendo significar que se locomovia rio a cima.

Só que a luz foi-se apagando após uns quinze minutos de observação e um silêncio passou a reinar no ambiente. Aqui e acolá um pássaro noturno respondia presente.

Conjecturas, situações, hipóteses eram levantadas.

–Teriam parado para deixar algum passageiro? O Mestre estava impaciente...

–Não acredito, pois não há morador naquele lado. Não há bolivianos nesse trecho. Pedro afirmava com convicção.

–Mas nada impede que uma família possa ter escolhido o local para ali implantar um sitio.

–Possa ser! Possa ser! Mas acho difícil, é área alagável e o rio está pegando muita água bem rapidamente e estamos em janeiro, já chove demais agora.

–Senhores, pode ter quebrado o motor, pode ter descido de bubuia ou então, o motorista o está consertando! sugeriu o telegrafista dos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul.

–Bem pensado, Luciano! Contrapôs o Pedro, revigorando o seu entusiasmo.

–Se não aportar aqui até a madrugada, desceremos para prestar socorro, bem no inicio da manhã, disse resoluto o Mestre Anacleto, do alto da sua responsabilidade.

O certo é que a tal “embarcação” que foi imaginada chegando a Conceição na noite anterior, não amanheceu ali, conforme o esperado.

Ainda estava escuro quando o líder, Pedro e um piloteiro, após o café com tapioca no leite da castanha e farofa de carne seca de cervo, desceram o barranco e rumaram numa voadeira em direção a suposta embarcação que não atracava.

O sol já estava imponente, impavidamente colossal na sua exuberância. Aqueles três, pelo lado esquerdo, espreitavam a procura da composição fluvial. E desceram e desceram até terem a certeza de que, do ponto em que estavam, já tinham passado do local onde, em tese, teriam avistado aquele foco de luz intensa. E se dirigiram ao lado brasileiro.

–Ali naquela curva mora o Velho Raminho. Vamos lá com ele. Sugeriu Pedro, conhecedor daquela geografia.

E assim fizeram. Os cachorros latiram. Raminho já tinha ouvido o motor da voadeira.

–Amigo Raminho, bom dia! Prazer em vê-lo, velho amigo!

–Mas é você, jovem Pedro? E seu Pai? E seu Tio? Como estão? E o senhor Mestre Anacleto, como está? Disse tirando o chapéu em sinal de respeito.

–Estão todos bem!

E passaram aos apertos de mão, com direito a abraços. Até um café requentado lhes foi servido.

–Amigo Raminho e o motor que passou por aqui ontem à noite? Não o encontramos. Estamos preocupados...

–Vocês viram a “monstra”? Seus olhos brilhavam!

–Que “monstra”?

–A baita sucuri que subiu como se estivesse navegando, com aquela soberba que somente os bichos muito grandes possuem. Era ela, sim! Fiquei daqui de cima vendo a algazarra dela lá pelo lado boliviano. E o motor da empresa está é bem atrasado...

Assim o velho Raminho resumiu a história e ajudou as visitas a melhor interpretar o barulhão e o foco de luz que, na noite anterior, extasiaram a todos no porto de Conceição.

Ficaram mudos, preocupados e taciturnos... despediram-se do anfitrião. Depois o telegrafista dava a informação de que o Motor EMA havia quebrado ainda na foz do rio Pacaas Novos e descera justamente de bubuia1 , para reparo na oficina da empresa de navegação, após o que subira o rio novamente reiniciando a viagem.

A partir daí Pedro e Anita puderam chegar ao porto de seu destino.


De bubuia. 1. Bras. Amaz. Boiando ao sabor da corrente; flutuando (V.Dicionário Aurélio).

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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